Boas vindas

Que todos possam, como estou fazendo, espalharem pingos e respingos de suas memórias.
Passando para as novas gerações o belo que a gente viveu.
(José Milbs, editor)

29.12.06

O NATAL DOS EXPLORADOS E DOS EXPLORADORES...

O NATAL DOS EXPLORADOS E DOS EXPLORADORES

Da maldade e da magnanimidade humanas

José Milbs Lacerda Gama

Habitam luxuosas residências. Caras de paspalho, uns com barbas, outros com as caras raspadinhas e cabelos feitos em salões. São animais que a ciência insiste em dizer que fazem parte da espécie humana: comem, dormem, fazem suas necessidades e até aprenderam a procriação. Mas não trabalham. Antes, vivem da exploração do trabalho e cumprem as ordens da desordem crescente.

Costumam se cercar de seguranças com seus ternos negros que mais parecem capitães do mato lançando olhares que imitam valentia. Usam veículos importados. Trazem mulheres que cheiram a perfumes caros e acompanham infelizes filhos que os admiram como a um cofre abarrotado de dinheiro. Parecem animais criados em cativeiros, frangos e frangas americanos que não podem se expor ao vento ou colocar os pés em outro chão que não seja o das granjas. Nesse caso, o chão dos palácios e gabinetes.

Ventos açoitam as folhas das palmeiras e coqueiros que ornam a Praia dos Cavaleiros, em Macaé, cidadezinha do norte do Rio de Janeiro. Meninos e meninas normais expõem seus cabelos ao morno ventar que vem das Ilhas Nativas. Pés descalços, sorrisos nos lindos olhos e no repuxo dos sobrolhos queimados pelo sol macaense. Assim é a bela e boa gente trabalhadora dali.

Espigões é a diferenciação no mundo natural de casas simples mas plenas de aconchego e de amor. A ganância contraída no processo de acumulação fez de cada engravatado com seu sorriso de lagarto esquecer que existe o humano dentro de si. Transmitem aos pobres e infelizes filhos uma imagem fedente a perfumes e gestos efeminados dos opressores em decadência. Os jornais que socorrem os exploradores anunciam leis contra o povo, trapalhadas financeiras e os eventos ociosos das mansões, a maioria construída mediante desvios de cofres públicos, superfaturamento de obras e “serviços” junto aos tais poderes constituídos.

O meigo sol de primavera se aproxima com o novo ano. A cidade está inflada. As empreiteiras se vão e, em seu lugar, ficam as sub-empreiteiras dirigidas pelos jagunços pinçados a dedo nas fazendas. Eles convocam rapidamente os trabalhadores que estão nas obras, aqueles que, com suor, lágrimas e saudades, foram os responsáveis pelas construções.

II

A frieza dos jagunços se assemelha ao do seu chefe investido de empresário, o mesmo que se posta ao lado dos que exercem a função de autoridades municipais. Burocratas mais graduados supervisionam os detalhes das inaugurações.

A temporada de festividades consagradas ao esplendor do crime lícito chega rápido. Tim-tins barulham copos do mais puro escocês, tão puro quanto a fina casta de ladrões e assassinos que o consome. Espalhados pelos salões e jardins que os acolhem, esses grupos de expropriadores do patrimônio público destilam idéias monstruosas enquanto expõem suas presas de pervertida alegria. Esforçam-se o quanto podem em cada detalhe da imitação de cordialidade humana, revelando pleno domínio sobre as regras de conduta dos desocupados sociais. Tapinhas nas costas de outros empregados de luxo denotam formas cínicas de distribuir chantagens e ameaças, como que fizessem recordar que as benesses recebidas dos faturamentos devem ter sempre continuidade.

Nas areias da praia, centenas de jovens se banham e olham descontraídos para o vai e vem das ondas esverdeadas e puras. Algumas crianças correm e brincam com pequenos caranguejos que assanham as areias e voltam para seu habitat.

Os trabalhadores — antes convocados pelos “agenciadores de emprego”, na realidade agenciadores do desemprego — foram avisados: estão dispensados do longo e penoso trabalho de quase um ano de obra. Moraram em palafitas, se alimentaram de comida fria, beberam muita pinga para abafar o soluço trazido pela humillhação e pela nostalgia.

Chamados nominalmente e, contendo o ódio que brota em seus olhos, recebem a última parcela do salário miserável. Aceitam como lhes chegam os registros adulterados nas carteiras de trabalho. Até porque onde iriam reclamar “seus direitos” se, por entre as frestas envidraçadas dos escritórios, avistam os dirigentes do sindicalismo burocrático recebendo as tradicionais cortesias dos prepostos? Agora estão sem serviço remunerado. O que fazer para sustentar a si e à família?

III

Crianças, filhos desta pobre burguesia cujos dias estão contados com a aproximação da nova democracia, admiram as lindas meninas e meninos que vivem livres sob o sol nascente de Macaé. Querem também ir ao encontro de seus pares infantis, porque criança nasce tudo igual. São socialistas natas. Os canalhas, produtos do modo de produção imperialista e em agonia final, é que os desviam o quanto podem do amor fraterno.

Do luxuoso hotel, elas buscam pelas gretas algum gesto que as identifiquem na essência com as crianças livres. Afastam-se sorrateiramente do do ambiente podre de seus pais e dos demais cúmplices. Querem a liberdade de brincar, correr, ver os tatuís abrirem suas casas. Descem as escadas, quando já começam a ouvir os alegres ruídos da Praia do Pecado, do sussurro do mar...

Os braços dos homens de ternos pretos obstruem a passagem e mandam as crianças de volta ao odioso regime de divisão de classes. Os seguranças não fazem mais que adiar a tendência natural da coisas...

Vendedores ambulantes gritam sacolés, biscoitos, guloseimas e da mesma forma são afastados da frente do hotel. Tiras verde-amarelas cercam as ruas evitando a aproximação do povo.

Por alguns momentos, os operários esquecem o sofrimento, a repressão dos exploradores e o desprezo dos acomodados. Cantam, assobiam cantigas de suas terras. Alguns ainda olham para os luxuosos prédios que construíram, como que imaginando para que tipo de gente trabalharam, que espécie tão pouco humana irá ocupá-los. Mulheres que conheceram, amigos que fizeram, crianças que acalentaram; tudo fica para trás. Pensam nas histórias que poderão contar aos seus filhos enquanto caminham pelas ruas macaenses rumo à rodoviária. Companheiros de mais confiança se encarregaram de trazer, de uma forma ou de outra, a alvissareira notícia que de que algo está para acontecer em toda a região do Rio.

Com efeito, a quase uma hora dali, uma casa abriga vinte e oito operários que traçam planos de filiação a uma central de novo tipo. Prossegue animada a pequena assembléia que, na sua primeira pauta, já decidiu pela fundação do sindicato classista e combativo, verdadeira e digna organização da classe operária na construção civil.

Em Recife, uma grande família, pais filhos, esposa e amigos recebe o corpo do operário Severino que despencou e morreu na Construção de Quiosque na Lagoa de Imboacica em Macaé.

A ganância, a certeza da impunidade permanece. Que os ventos do nordeste, que costumam atingir nossa região desvastada por desmatamentos e asfaltos, não levantem as estruturas desta obra farjuta, abençoada pelo Crea, Serla e Ibama e não mate nossos filhos num desabamento que se anuncia.

Toda a obra, se fiscalizada sem que corra grana anexada aos laudos, está eivada de desmandos técnicos e, em qualquer país sério, daria prisão e perda das funções Publicas para todos os envolvidos.

Segundo apurei, o Severino já tinha alertado aos jagunços da Prefeitura de Macaé e os da Empreiteira que os “parafusos eram pequenos e de fragilidade. Que ele mesmo havia pensado em comprar, de seu próprio bolso”, um parafuso mais forte. Assim que morre o POVO brasileiro em pleno governo de colisão no Brasil...

(José Milbs de Lacerda gama, cronista, escritor e editor de O REBATE, www.jornalorebate.com 75 anos de Histórias).

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