Boas vindas

Que todos possam, como estou fazendo, espalharem pingos e respingos de suas memórias.
Passando para as novas gerações o belo que a gente viveu.
(José Milbs, editor)

25.3.07

BEBAM PETRÓLEO QUANDO A AGUA ACABAR

LIVRO/CRONICA:

DOS FERROVIARIOS AOS PETROLEIROS: - A GRANDE MENTIRA MACAÉ-CAMPOS.

Nota do Autor: Este relato busca resgatar a grande mentira Macaé - Campos numa viagem feita na ferrovia. Não se trata do resgate do martírio de escravos na construção do Canal Campos - Macaé nem da grande e longa mentira que a Bacia do Petróleo esta em Campos. Isto reservo para um novo livro que estou fazendo. Este relato, onde misturo ficção e realidade e ainda resgata presença de pessoas que viveram numa época e que nunca foram citados, faz parte de minha objetiva necessidade de colocar o leitor a par dos acontecimentos havidos.

Quem tem mais de 50 anos já ouviu falar em João Barbeiro. Quem não tem que procure sair de frente da TV e do balcão de cervejas e pergunte aos mais velhos. O resgate da historia, às vezes alegre e muitas das vezes cruel com a injustiça faz coro com a minha vontade de ver justiça com os olhos vendados e nunca piscando para o lado do poder e da grana.

Que os leitores se sintam a vontade e, na duvida de algum texto, consultem os mais velhos das duas cidades.

Qualquer semelhança (como nos escritos dos velhos filmes) é mera coincidência.

A homenagem que presto ao meu amigo e companheiro Waldyr Tavares quero que seja estendida a todos os ferroviários quer viveram uma época de transformações nesta região Campos/Macaé. No meu livro O PINGUIN DA RUA DO MEIO, com quase 700 páginas procuro nomear estes senhores ferroviários de nossa história e que os conheci pessoalmente quando fiz meu curso de Torneiro no Senai 8-1.

Na verdade este livro/cronica é um gancho que pretendo, na parte de grana, para alavancar meios para o livro do Pinguin. Se vender l000 livros, como fiz nos Cabelos Brancos em 96, pretendo arrecadar o necessário para por na editora o livro de 770 páginas que esta dormindo alegremente no Word de meu velho PC. Se não conseguir por o livro na rua eu perco, pela vaidade que habita todo escritor ao ver-se lido e comentado. Os leitores perdem mais ainda porque falo coisas lindas e que tenho certeza irão fazer as recordações fluírem em todos que tiverem acesso ao livro. (José Milbs).

Capitulo I

Canela de Pau era magro, Perna fina, Nunca ia à praia e, quando ia ficava sempre meio escondido, ressabiado com olhares, principalmente feminino Ele pensava que os olhares e os sorrisos furtivos que as adolescentes lhe dirigiam eram de criticas a sua Canela fina e esticada.

Risinhos escondidos em mãos frágeis que vinham das meninas em sua direção era motivo de escondimentos de pernas e olhares desviados. Era assim que ele não assumia a sua beleza magra e sensual. Não imaginava que o conjunto de seu corpo era de uma beleza que a todos encantavam. Ficavam horas e horas em sua praia solitária esperando à hora de solidão para seus mergulhos matinais.

O sol sempre vinha cedinho e Canela de Pau caminhava em direção ao mar que era seu grande aliado no escondimento de suas Canelas. Lá, dentro do mar, furando as lindas ondas parecia um outro menino. Alegre, como um jovem boto, fazia suas entradas e saídas no mar azul e de lindas e reluzentes ondas. Sua existência dentro do mar era diferente da vida em terra. Depois de horas de integração com sua beleza escondida se dirigia aa areias amarelas e de pedrinhas pequeninas em sua praia de sempre. Nada de olhar para os lados. E há poucas horas que olhava sempre tinha algum olhar feminino a lhe gravar a lembrança que lhe levada, automaticamente as suas Canelas fina e compridas. Nada de fixar olhos. Firme ele senta em uma estendida toalha de banho branca e fica olhando o sol e queimando seu lindo corpo de menino de 13 anos.

As horas passam e, chegando aproximar-se do meio dia, se prepara para voltar à casa. Sempre ouvia em, nas longas conversas em família, sentadinho a beira das Cadeiras nas Calçadas estendidas na rua que nasceu e jogou bola de gude, que o sol depois das 12 horas prejudica a saúde. Um olhar escantilhado de um lado para outro faz com ele veja se não está sendo observado por alguma menina.

Agradece ao momento quando sente que ninguém o observa quando se levanta, tira do corpo lindo algumas pedrinhas brilhantes de areia e algumas algas que o vento lhe ornou a toalha e se dirige à rua onde nasceu, brincou os primeiros anos e ainda mora. Longe seu olhar cai nas ilhas distantes da praia. Por algum momento sua cabeça fica belamente atordoada com a beleza do mar e das ilhas nesta manha de 2a feira num ano qualquer de sua cidadezinha. Seu caminhar é lento como a vida neste mundão de beleza que seus pés pisam. É uma rua com poucas casas a que vai da praia a que ele mora.

Uma rua reta onde o primeiro olhar já pode ver na distancia uma praça no final, a umas duas mil passadas lerdas e descontraídas. Reta não delineada por mãos humanas. Com flores nativas em frente a poucas residências e muito cercado de bambu japonês dá um lindo e esverdeado bronze as pequenas casinhas. Seu caminhar é lentamente despertado pela presença de algum outro menino desta cercania. Alguns indo para praia porque a aula tinham terminado, outros com gaiolas a mão em busca de um passarinho faminto e desprevenido. Cumprimentam-se, param, papeiam coisas da idade. Se a praia esta boa se tem onda forte ou se tem meninas. Perguntas que são repetidas em todos os lábios de quem vive a beira do mar e vão às praias...

Canela de Pau tinha a fama de grande namorador no pequeno colégio público e por isso tinha sempre o olhar ciumento de muitos meninos. O que eles não sabiam era que, na praia ele se assumia diferente de quando estava de farda ou uniforme no colégio. Se antes, falador, alegre, sempre cortejando as meninas na praia era outro o seu modo de agir.

Algumas meninas diziam que ele era “mi tido”. Marrento mesmo e isto ele não tava nem ai para desmentir. Meninos se despedem e caminha em direção a praia e, Canela de Pau aumenta as passadas para chegar a casa, tirar o sal do corpo, comer alguma coisa e ir para o colégio.

Como todo menino nascido em qualquer rua de qualquer cidadezinha de interior, ele é acariciado afetivamente por todos os moradores da rua. Acenos, cumprimentos, afagos no seu cabelo loirinho já caminhando para o castanho, ele recebe em cada casa que passa na sua ida rápida a casinha onde mora.

Pensamento sempre aguçado no que virá nesta tarde nem nota algumas tranqüilas bicicletas que passam a sua volta. São ferroviários que voltam ao trabalho respeitando o “buso” que tocou pela 2a vez avisando que esta próxima o ultima aviso de suas chegadas. São homens que trabalham das 7,00 ate as 16,00. Saem de casa sempre pela manha, as 6,30. As 15 pras 7.00 toca o “buso” e eles caminham em direção ao trabalho.

Com uma hora de almoço das 11 às 12 horas eles sempre voltam e ficam conversando nas imediações do seu local de trabalho. Sentam preguiçosamente em baixo de uma amendoeira e alo ficam jogando conversa fora e se informando das novidades comuns todo operário em qualquer parte do mundo.

As pessoas que passam pelo menino ele conhece apenas de nome. Alguns são pais de amigos seus outros visinhos de ruas próximas. Balbucia alguma frase para alguns deles e seu caminhar já esta quase chegando às proximidades de sua morada. Os homens que passaram nas bicicletas já estão dobrando as vielas que os levariam ao trabalho. Pequenos trechos de futuras ruas. Abertas apenas pelo caminhar diário e são de uma beleza incomum. Pequena arvore pés de maracujás, com seus frutos pendurados, algumas pitangas são sempre apanhadas nesta caminhada de velhos e jovens proletários.

Três nomes são chamados este encantamento de ruas. Rua do Meio que viraria Rua Doutor Bueno, Rua da Poça, que se transformaria em Luiz Belegard e a Rua da Igualdade, com seus cemitérios, que manteria seu nome, até por que sería um crime mudar tão sugestivo nome que as pessoas em vida esquecem de viver e pregar.

Chegando à rua que margeia a praia eles (os ferroviários) abrem os botões de suas vestes. Algumas destas vestes estão ligeiramente sujas de óleo. Outras cheiram a madeira raspada. As primeiras são de Caldeireiros, Torneiros, Eletricistas e Ferreiros e os últimos dos carpinteiros.

Todos deixam entrar em seus peitos o sol ameno que bate firme e deixa a mostra à beleza de seus corpos fortificados pela luta do dia a dia. Aproximam-se da velha amendoeira de galhos frondosos e se sentam. Alguns que moram longe e levaram a comida em potes já estão ali de há muito tempo.

Papeiam com alguns poucos turistas que chegam a pé e, na chegada dos que almoçaram em casa, a conversa volta a ser deles. Olhares para mulheres que passam com marido ao lado, para adolescentes que chegam e algumas domésticas que deixaram o serviço e vão também tomar seu banho diário. A maioria que esta sentada em baixo da amendoeira é mesmo de ferroviários. Tem alguns meninos dos bairros próximos mais todos são filhos ou parentes destes homens suados e belos que, sentados ou meio deitados, estão fazendo a historia de suas vidas.

Ainda não apitou o “buso” de 15 para 12.00 e, o tempo parece que para. As sombras que saem dos galhos da frondosa arvore dão um colorido especial às roupas destes homens lindamente rudes que se põem à mostra enfileirada na pequena escadaria que fica em torno do local de sentamento.

Bem atrás, numa distancia de alguns metros turistas estudantes e ferroviários em férias, jogam animada pelada. Entre o local onde eles conversam e o pequeno campinho tem um barzinho onde, aqueles que não foram almoçar em casa podem se sentar e comer e ainda conversar longa e deliciosamente com o proprietário e trabalhadores do barzinho.

Enquanto isso, Canela de Pau já esta quase chegando a casa. Minutos de eternidade são estes que o separam da residência onde o esperam para comer. Na praia, sol a pino, dezenas de pessoas, esticadas em longas saídas e entradas de praia, douram corpos e deixam-se levar pelo sono. Nas pedras que ficam no final da praia, rapazes pulam em trampolins improvisados ou nadam em torno destas pedras cheias de limo verde e balsedos. À direita os muros de um velho Balneário são usados por corajosos meninos em pulos por entre pedras e ondas que vão e voltam. Bem ao longe, num longo muro de pedras, já bem dentro do local onde os proletários cedem sua força de trabalho ao capital inglês, outros rapazes, indo a nado, chegam e burlam a vigilância para se tornarem por algum tempo heróis em mergulhos profundos vindo do alto destes penhascos íngrime e vigiado. A conhecida Pedra do Rodrigo nada mais é do que velhos penhascos estirados à beira mar que fazem dos que ousam nele pular motivo de olhares e admirações de quem está nas pedras que margeiam a praia.

A vida, sempre preguiçosa, faz destes homens, mulheres, crianças e trabalhadores personagens de uma beleza incomum. Fazem histórias sem que saibam de sua importância dentro dela. Não imaginam o futuro. Vivem um presente singularmente deles. Estes minutos de eterna sintonia como divino unem estes seres. Mesmo distantes geograficamente eles se tocam no paralelo que se une. A inexistência dos valores materiais em certos momentos da existência humana poe o homem no patamar da igualdade que faz brotar o prazer do verdadeiro ser.

O menino de 13 anos que caminha para a casa: o proletário ferroviário que papeia em sombra de amendoeira: as meninas que chegam para dourar a linda pela morena: os afoitos e corajosos rapazes que, a nado chegam ao paredão de pulas enfim toda esta minuciosa presença humana, carregadas de energias do vital que os une na existência que vive, se liga de forma harmônica para dar seguimento da vida de uma cidadezinha de interior.

O apito das 12 horas ainda esta longe de chegar. Mais urge que o banho seja tomado. Uma grande bacia com fundo de madeira que substitui o fundo que foi furado pelo tempo de uso, espera o menino com a água morna esquentada pelo sol. Esta água, além de tirar o sal ainda lhe fará bem à saúde porque água esquentada nos raios solares é rica em energias. Assim ele sempre escutou dos seus avós e fica feliz quando chega ao portão de sua simples casa. Recebido no portão por uma senhora de cabelos brancos, vestida de negro e com um lindo sorriso. Existe mesmo uma diferença em ser criado por avó?

Canela de Pau entra porta adentro e vai direito ao quintal tirar o sal do corpo e ir para o colégio. Antes, quando ainda estava uns 180 metros para chegar em sua casa e, já avistava o vulto de sua avó no portão de madeira da casa, ficou matutando sobre suas canelas finas. Quando ia jogar bola no campinho do areal que ficava uns 700 metros de sua residência ou quando ia numa rua distante uns 1000 metros num campinho de uma rua que tinha dois cemitérios ele evitava bola dividida. Poucas idas e vindas ao Estádio Municipal.

Embora gostasse de jogar na “banheira”, sua posição predileta era na ponta esquerda. Chutava bom com a perna esquerda porque tinha tido um grande corte de caco de vidro na sola do pé direito. Corte que lhe fez ficar muito tempo com curativos porque a região era muito difícil de se cicatrizar. Além do mais os pontos, em forma de grampos que era usado no hospital tinha sido infectado pela constante teimosia em jogar bola pulando numa perna só. Engraçado que quando algum menino cruzava com ele em trombada ele não sentia muita dor e o outro saía reclamando. Canela com canela ele levada vantagem.

Medo de quebrar sua canela fina ele tinha e isto o atormentava. Imagine quebrar a canela no meio. Quando estava no meio da meninada, ora sentado nas beiras dos caminhos ou debaixo de arvoredos, sempre faziam medição de canelas. A dele era sempre a mais fininha e os dedos que mediam o tamanho se encontravam, por menor que fosse a mão que media.

Daí que seu apelido de Canela de Pau corria de boca em boca na meninada de sua cidadezinha natal. Sua sorte pensava, já quase chegando a casa, era que este apelido não estava indo parar nas meninas já que os meninos evitavam espalhar por que achavam que com isso ficariam em pior situação nas divididas das peladas.

Os meninos queriam evitar que as meninas soubessem que eles, num confronto direto de pernas saiam sempre chorando e Canela de Pau bem nas paradas. Isto era um pequeno conforto mais não diminuía sua apurrinhação por ter canela tão fina e cumprida. Os últimos momentos de seu banho na bacia com fundo de madeira foram alegres. Jogava água que ajuntava em suas duas mãos em forma de concha em sua irmã de 11 anos e ainda espantava pintos e galinhas que rodeavam sua bacia. O cachorro amarelo com listas brancas e pelos reluzente esta sentado perto dele e gosta de receber os pingos da água que lhe acalma o calor de meio dia. Lá dentro uma mesa esta sendo colocada para seu almoço o que lhe fará ir logo em seguida para o colégio.

Na praia, a espera do estridente apito que chama os operários/ferroviários para o trabalho, tudo gira em torno de um dia qualquer que pouca diferença faz do ontem e não fará no amanha. Alguns fazem trocas de bicicletas por outra e pegam passarinho cantando “de volta” e outros ainda acender os últimos cigarros encoralados num maço de “cinco pontas” que era um fumo vendido em todos os mercadinhos. Afora o "cinco pontas" havia ainda os “fomo de rolo” vindos diretamente do interior que tinha um cheiro forte. De vez em quando eram maços de cigarro Iolanda, Clarin, Saratoga e Astória com ponteira. Ainda não tinha chegado à cidadezinha o cigarro continental com ponteira.

As pitadas iam de mão em mão parecendo até a volta dos tempos dos índios com seus históricos e harmonioso “cachimbo da paz”. Entre uma baforada e outra os minutos se eternizavam. Às vezes o assunto deixava de ser as pernas bonitas das meninas e o olhar de soslaio de mulheres casado safadinhas que já existiam, eles buscavam falar sobre seu mundo de operários. Dia após dia trabalhando esperando sempre o “trem pagador” chegar nos primeiros dias de cada mês. Holerite sempre igual. Pouca perspectiva de ver os filhos fora desta vida, eles iam se tornando mais sérios em suas faces lindas e, já com algumas listas em forma de rugas.

Algumas destas rugas eram forjadas na batida diárias de malho em bigorna numa ferraria quente e perigosa. Outras eram mesmo o serenar da vida que estava vindo delicadamente para torná-los mais adultos e sensuais.

As buscas de um mundo melhor semeavam as falas destes homens, cansados de noites de pensamentos e dias de longas jornadas. Impossível mudar isso, falava um velho carpinteiro, bocejando e esticando os braços até onde podiam se encontrar as duas mãos calejadas e dedos longos. Porque você diz isso, resmunga ou caldeireiro moreno e cabelos de carapico.

Tudo na vida pode ser mudado dependendo de como a gente faz a coisa, alertou um jovem guarda-freios que, de férias estava ali junto aos companheiros esperando a hora passar. Como você diz isso com tanta certeza? Interroga um torneiro-mecanico que, sentado ao lado de um ajustador e um velho aposentado, deixou escapar a incerteza de dias melhores. O guarda-freio não titubeou. Olhou seu velho relógio Mido a prova dágua e com voz firme e mansa sentencia: vamos nos unir, bancada com bancada, longe das chefias e dos que almejam chefias porque os ingleses não são bobos e pagam bem a informação.

Vamos de boca em boca fazer de nossa dificuldade um motivo de luta e, em pouco tempo à coisa mudará. Seus olhos brilhavam como deviam brilhar os de centenas de lideres que a história não conta.

Capitulo II

A semente tinha sido lançada e ele o bem sabia. Suas férias não tinham sido em vão e sua volta a Macaé, nesta manha de sol de verão tinha o sabor do belo. Tinha a beleza do dever cumprido. O sol ainda esta bem alto quando o menino Canela de Pau sai de casa para o Colégio e o Guarda-freio vai para sua casinha pobre num bairro qualquer desta cidadezinha. Os ferroviários se levantar de sua preguiçosa posição em baixo da linda amendoeira. Quem tem bicicleta “amonta” quem não tem vai de “viação canela” com destino ao trabalho que movimentará milhões de dólares nos bolsos, já cheios de ingleses, donos da ferrovia.

Antes mesmos de deixarem suas bicicletas e apanharem, no painel o seu numero de funcionário e jogar numa caixa, eles se entreolham e lembram das palavras do jovem guarda-freio. Quem antes nem pensava em mudar a vida dos filhos e netos que viriam já querem alternativa de vida. Chega de ficar igual gado indo e vindo dia após dia e sem que o lucro aumente alguma coisa em sua mesa. Já olham desconfiados para o cara que fica postado na entrada do trabalho e vigiam tudo que sai nos bolsos e entram. Homens que mais parecem, agora, os “capitães do Mato” que matavam e cassavam irmãos negros e entregavam companheiros.

Seus olhos agora eram de quem queria mudar esta relação de maneira que, no futuro não veja seus filhos sendo arrastados por esta maquina devassaladora que é a exploração do homem. Agora já iam olhar o sorriso dos que usam os macacões, sobretudos azulados e gravatas. Eles são, sem saber os inimigos da classe trabalhadora que tanto frisou o jovem de férias embaixo da velha Amendoeira. Sem que ele possa perceber tem que ser falado de boca em boca, de bancada em bancada, a idéia de mudar esta situação. No outro lado da cidadezinha o menino de 13 anos, o alegre Canela de Pau já esta entrando nos casarão onde funcionava seu colégio.

As doze badaladas de um velho relógio de parede, no corredor do colégio, batem ao mesmo tempo em que o Buso da entrada dos ferroviários na periferia da praia. Ambos os avisos dão conta de pequenas e sutis obrigações entre estas duas e desconhecidas existências. Canela de Pau indo para a Escola Ferroviária 8-1 Senai e Guarda-freios indo para as oficinas da Estrada de Ferro Leopoldina...

Canela de Pau e o Guarda-freio jamais imaginariam que iriam fazer parte de uma história linda de uma cidadezinha de interior, iguais a tantas outras. Suas duas presenças vivas eram diferenciadas em geografia. Nunca tinham se visto antes. Canela de Pau e o Guarda-freio estavam fazendo parte de um mundo completamente desconhecido e, nem eu sonho imaginariam alguma coisa que os fizessem ligados. Somente pela criação que ambos tiveram de seus familiares tudo neles eram diferente. Guarda-freio tinha 22 anos e Canela de Pau 13. Se eles tinham sido educados por mães de avós que lhes colocaram na cabeça a existência do eterno e de um ser criador isto era comum entre os dois. A Mãe de Guarda-freios dizia para ele, desde que começou a andar que na “lua morava São Jorge” e, ele, não é que via este São Jorge lá na lua. E Canela de Pau tinha também outras crenças. Educado num credimento de santos e outras coisas tinha na criação de Adão e Eva uma crendice.

Que coisa terrível para seres humanos sendo educados em coisas que não se tem certeza de ser real. Guarda-freio, logo viu que tudo aquilo não passava de uma mentira milenar que faz com que os seres fiquem atrasados em seu raciocínio. Canela de Pau ainda acreditava em Santos e outras coisas.

Se um companheiro de idas e vindas nas claras noites de luar que permeava a presença de guarda-frios nos trilhos da estrada de ferro, não tivesse aberto sua visão ele talvez demorasse mais tempo para sacar a inexistência do São Jorge Lunar...

A cidadezinha continuava sua lenta e preguiçosa vida. Alguns carros de bois passam com destino a matadouros. Homens do Mar voltam de longas pescarias em mares distantes. Alguns comerciantes começam a construir seus altos e baixos. Uma espécie de casa em cima do comercio, Era uma maneira de se sentir rico nesta época de pouco progresso. Quem tinha uma vendinha, juntava dinheiro e construía em cima onde morava e criava os filhos.

Nesta monotonia as mutações eram lerdas como lerda era a passada dos transeuntes nas vias principais. As tardes e manhas tinham o saboramento gostoso de gosto ameno e adocicado pelo prazer do nada. Peladas se multiplicavam em terrenos baldios e descampados. A estação de trens se movimentava três vezes durante as chegadas das suas composições. À tardinha vinha o Expresso, mais adiante, lá pelas cinco e meia vinha o Rápido e nas madrugadas o Noturno.

O gênio meio indomado de Canela de Pau era uma marca de sua personalidade. Detestava sem saber as ordens vindas de outras pessoas e com isso sua frágil figura magrinha ia criando asas e descobertas diferentes dos meninos de sua idade. Rebelde como aluno, respondão como nenhum outro ele foi se destacando de maneira que não se adaptava muito facilmente a doutrina que era passada em colégios e nas casas dos parentes, Fingia aceitar certas coisas e, na medida em que se via sozinho, ria das coisas que pensavam que ele tinha acordado e, quando se via livre usava de meios, muitas vezes engraçados, para dizer não ao que os outros diziam sim.

O Guarda-freio voltava de suas férias. Tinha ido de trens até Barão de Mauá e se lembrava das noites em que vinha do Rio de Janeiro até a sua cidade de nascimento e trabalho. Numa destas viagens foi que um companheiro riu de suas infantilidades no infantil “São Jorge da Lua”. Sem ele saber estava ali, sendo pinçado ao Materialismo Histórico que tanto rebuliço estava criando na Europa.

A Lua no alto do infinito clareava os trilhos por onde a Locomotiva trilhava seu belo trajeto. A mata tinha um novo cheiro e os ventos que assanhavam seus cabelos tinham um formato muito diferente. Parecia que alguma coisa nova tinha tocado a existência deste jovem ferroviário de 23 anos.

Capitulo III

João Barbeiro tinha fama de grande mentiroso. Seu salão, num baixo de uma salinha num dos poucos hotéis da cidade vivia cheio. Não se sabe de onde ele veio Não era nativo da cidade assim como não o era um tal de Xisto Antonio Reis que toda eleição se metia a concorrer como Prefeito. Nunca chegou a ter mais de 100 votos mais era famoso junto às crianças que o cercavam e recebiam doces. Diziam que se criança votasse este Xisto seria eleito prefeito. João barbeiro também era popular. Suas mentiras eram citadas em todas as rodas. Claro que havia muitos concorrentes. Muitos motoristas de praça achavam que ele não era tão eficiente na mentira e elegeram um colega como maior. Outros barbeiros bairristas não abriam mão de seu colega Pitico como mais eficiente na arte de mentir. Para que tudo isso não ficasse sem um vencedor o próprio João Barbeiro lançou o desafio. Iria pregar a maior mentira de sua vida, Esta ele ia começar em Macaé e ia terminar em Campos. Para tanto ele tinha que tomar o trem e ir contando a Longa Mentira MacaéCampos sem que os ouvintes deixassem de fixar-se na sua história. Alguns se propuseram a fazer parte desta viagem como observadores.

A Estação de trens de Macaé estava cheia de gente. Um sol ainda tênue cai sobre os trilhos os fazendo brilhar intensamente. Cadeiras, bancos e alguns embrulhos estão postados na beira de um grande cimentado alto onde o trem para. Este cimentado tem o tamanho ideal para as pessoas entrarem nos vagões. Um pequeno barzinho tem suas portas abertas e um senhor de meia idade chega com uma chaleira com café quente e saindo fumaças por uma abertura.

Na outra mão ele trás um grande prato com doces e salgadinhos que serão oferecidos aos passageiros que descerão para um esticar de pernas na estação. Alguns ferroviários já estão se locomovendo para uma caixa de água que tem um longo e amarelado pano cumprido que mais parece uma cobra achatada. É onde eles abastecem a locomotiva com água e esfria seu longo percurso pelos trilhos.

Este abastecimento deve demorar uns 15 20 minutos, tempo para esvaziar todo o conteúdo da chaleira do seu Petrônio e acabar com todos os doces. As famosas Mães-bentas são todas vendidas e são levadas por muitos para suas cidades. Ao longo da velha estação, dezenas de homens estão a postos para carregar malas e servir de guias a quem a cidade. No verão chega muito turista que procuram à cidade por causa de uma areia grossa e que contem monazíticas. “Falam até que consegue curar as sofridas e incômodo beribéri” uma coceira doida que da nas pernas dos que já tinham passados dos 30 anos e entrado na "casa" dos "enta".

Motoristas de praça ostentam seus reluzentes automóveis de pouco uso e muito já tem ate clientes certos. Passam os olhos nas malas trazidas pelos carregadores e abrem suas portas elegantemente para que o passageiro entre. São homens simples estes motoristas e teimam em fazer jus à profissão de relações publica da cidade. No trajeto que eles fazem da Estação de Trens até onde quer ir o passageiro é uma aula de conhecimentos de tudo que dia respeito à cidade. Falam da Lenda de uma Santa de nome Santana, das Ilhas do Francês e Papagaio e ainda, quando o tempo sobra fala sobre as figuras e o folclore da cidade; Todos fazem questão de mostrar o lindo prédio onde fica a Banda de Musica de nome “Nova Aurora” e quando se dirigem para a praia passam numa outra de nome Lira dos Conspiradores. Estes orgulhos são nativos em todas as pessoas de qualquer cidadezinha de interior.

Na Estação a espera tem o sabor do eterno. Parece que esta havendo um atraso. Santos e outros Telegrafistas mandam suas mensagens para Rio Dourado e Casimiro de Abreu para se certificarem se o trem esta com atraso. Em Rio Bonito o telégrafo tinha recebido um recado que em Barão de Mauá tudo tinha saído dentro dos conformes. O chefe da Estada, com sua farda de gala esta a postos andando de um lado para outro. Até que no íntimo ele gosta destes atrasos. Todos ficam olhando seu interesse em saber do que passa e ele tem seus momentos de “holofote”. Moças estão todas arrumadas e desfilam na estação. Sabem e disto suas mães sempre contam, de muitos casamentos que começaram numa estação de trens. Ai elas ficam mais elegantes e faz tudo para despertar algum solteiro passageiro.

Ainda não se escutou o apito. Este é dado assim que a locomotiva sai de Cancela Preta e se dirige à pequena cidade. Ao longo da estação já se pode ver um grupo de pessoas comprando ingresso no pequeno compartimento de passagens que fica a esquerda de quem entra na estação. O vendedor de passagens destaca e clica a passagem com hora e validade. Ao fundo desta sala fica o Telegrafista com sua farda negra e boné lindamente colocado no cocorocó da cabeça. O chefe da estação já se sente reinando. Chegam a ele alguns funcionários e lhe diz ao ouvido algo que faz com que saia de seus lábios um brilho diferente na dentadura escondida. Ele toma conhecimento que o Expresso esta já em Califórnia e se dirige para Macaé. Dedéu, este velho chefe de estação tem lá suas pressas. Sua garganta já pede uma dose da boa pinga que ele vai engolir assim que despachar para Campos este trem que esta chegando.

Vários homens estão embolados num canto da estação. João Barbeiro está pensativo porque sabe de sua responsabilidade de mentiroso. Ao seu lado alguns homens observam o ambiente. Sabem que será uma longa viagem na cata da mais longa mentira que se tem noticia. Crianças de colo, mulheres com sacos entre as pernas, homens de chapéus de abas largas e muitos de, sobretudo branco dão um colorido especial a este aglomerado de pessoas. A maioria deve ir mesmo para Carapebus. Capelinha do Amparo ou Dores dr Macabú, As passagens para os vagões de 1a. e de 2a estão sendo picotados e entregue quando é confirmada a chegada do trem.

Ao longo um apito que sonoriza alegria. As pessoas se mexem de um lado para outro. As adolescentes começam a se arrumar. Cabelos e posturas são ensaiados para a preparação de um belo que pode surgir. Crianças acenam no pequeno espaço de suas mãos para o Maquinista que já se encontra todo orgulhoso na frente do cortejo dos trens. Os seus braços estão encostados na soleira da janela e podem-se ver os olhos de um brilho que só é visto nos olhares dos grandes heróis. È o seu momento Máximo. Fazendo a “grande serpente de ferro” deslizar mansa e belamente por trilhos e puxando compassadamente e harmônico o apito, este homem rude assume a liderança que tinha assumido o chefe de estação em suas passadas largas de um lugar para o outro e sabendo-se observado. Agora era a vez de outro homem assumir este lugar de destaque na chegada do Expresso na Estação de trens da cidadezinha de Macaé, norte do Estado do Rio de Janeiro.

Capitulo IV

Casas de sapê, outras de pau a pique, velhos e enferrujados quintais estão à vista quando o trem começa a diminuir sua marcha. Já se podem avistar as centenas de pessoas que se espremem no cimentado alto da estação. Dentro dos vagões os viajantes da 1a Classe abrem seus sobretudos elegantemente. Muitos são azuis outros brancos e a maioria amarelos. São pessoas que devem vir da capital para o exercício de suas profissões. Juizes de Direito que respondem por varias comarcas, Defensores Públicos, gente do Ministério Publico ou mesmo médicos que chegam para algum atendimento de urgência. Como usam o trem de 1a classe eles passam a maior parte do tempo no vagão restaurante.

A estação é um só movimento. Andanças de ferroviários de um lado, passageiros de outro, mulheres balbuciam palavras ininteligíveis sobre homens que devem descer e tudo se volta para este maravilhoso momento mágico da chegada do expresso.

João Barbeiro prepara-se para sua Longa Mentira Macaé - Campos. Ao seu lado quatro ou seis amigos serão testemunhas de sua façanha que deve começar na saída do trem e ir até a estação do Caju em Campos. Sua vestimenta é simples. Usa um, sobretudo cinza que combina com seu chapéu. Cabelos cortados a “lá Príncipe Danilo” e um bigodinho aparado que vai de um canto a outro do seu lábio superior. Seus sapatos estão brilhando. Tinham sido engraxado pelo negro “Tiziu” que nem cobrou o serviço porque tinha apostado que João barbeiro ia fazer o trecho com sabedoria e técnica, pregando a sua grande mentira.

O Expresso para na estação. Gente que entra, gente que sai, vendedores de todo o tipo de doces e salgados se espreme na busca de algum troco. Laranja Macaé, Laranja Bahia e Laranja Lima são disputadas num pequeno carrinho onde uma maquina afiada vai descascando com uniforme beleza as laranjas. Carregadores de malas brigam para ser o portador e leva-las até o motorista de sua preferência. Um mundo de atividades que margeiam esta magnífica presença do Trem de ferro.

Os passageiros que apenas passam pela cidade descem e caminham em direção ao barzinho. Sabem que 20 minutos são o bastante para um pequeno passeio por entre gente e vendedores nas que passam.

O vagão de 2a começa a se encher de todo tipo de coisas. Embrulhos, crianças choramingando, velhos arrastados por netos e netas, mulheres transportando animais que seriam vendidos e voltam. Enfim uma gama de bugigangas que fazem do vagão um emaranhado de gente & coisas.

João Barbeiro entra no trem de 1a classe e se assenta. Enquanto no de 2a as pessoas sentam no pau duro de um banco reto e sem conforto, na 1 classe tudo é macio e de bom grado. Até os cobradores de passagens falam mais manso quando se dirigem a alguém que cochila. Na 2a classe não. Se alguém esta cochilando recebe um solavanco e tem que acordar rapidinho. Coisa da diferenciação de classe que o jovem Guarda-freio denunciava a seus companheiros na soleira da Amendoeira na praia de Imbetiba.

Estrategicamente ele escolhe o vagão que fica antes do Restaurante para que sua Longa Mentira seja iniciada e aumentada à platéia na medida em que o trem vai se deslocando com destino a Campos.

Outros guarda-freios andam de vagão em vagão olhando cuidadosamente um ferro grosso parecido com um punção gigante que une os vagões uns nos outros. Seu trabalho o leva a andar centenas de metros enquanto, lá na frente à velha Maria Fumaça vai “bebendo sua água” e se abastecendo de lenha para a longa caminhada por entre trilhos e pontilhões até Cachoeira do Itapemirim. O chefe da Estação vai até onde esta o telegrafista e ordena que seja avisado a Carapebus que este atraso não se deu em sua jurisdição e que já esta quase saindo daqui o Expresso. Sua garganta já esta seca e seus dedos longos e finos se entrelaçam como se estivessem segurando o copo de pinga ou de cerveja. Não vê a hora de sair dali, tirar o seu boné de chefe, montar em sua bicicleta e ir até o Bar São Cristóvão para se encontrar com seus amigos Thiers, Aluisio do Hospital. Rosalvo e Célio do Samdu. No bar, Sylvio Lopes Teixeira e Ivo Lopes Teixeira já sabem que a “noite será uma criança” para este magro e feliz Chefe da Estação. “Gabarito” ainda está rodopiando nas imediações do “Pingao” com seus pratos esticados na cabeça, quando o Expresso da sua partida. O Bar e Restaurante São Cristóvão, onde se podia comer o mais delicioso Peixe Frito com Arroz Pingado era a portalha das noites macaenses. Sylvio Lopes, que mais tarde viria ser Prefeito desta cidade, sabia preparar os melhores pratos e, sorrateiramente levava para os estudantes que ele sabia ser pobres, dois ou três garfos e aumentava o Feijão com Arroz.

A saída do Expresso leva João Barbeiro num vagão literalmente confortável. Será que conseguirá as atenções de todo o vagão na sua Longa Mentira Mace-Campos? No salão era fácil ter as atenções dos clientes por horas e horas de mentiras pequenas e bem humoradas. As pessoas lá pensava ele, enquanto um pequeno pigarro lhe assumia a garganta, iam esperar um atendimento e não tinham muito que escolher. Ou lhe ouvia ou mudava de barbeiro. Aqui era totalmente diferenciada sua atuação. Gente de todo o tipo e lugares e ele tinha que se fazer em atenção até que o trem parasse em Campos. Olha o vagão cheio. Homens ainda estão se acomodando nas suas poltronas esverdeadas e de fabricação inglesa.

Algumas já se encontram com fiapos que lhes fazem espetar as bundas semiburguesas. Mulheres se aconchegam aos ombros de maridos engravatados e de sobretudos abertos dando a mostra algumas gravatas e pregadores reluzentes. As crianças olham a magia da saída do trem e seu barulho nos trilhos. Ficam ainda mais encantados quando escutam o apito e as sombras que seu próprio vagão faz na campina. Olham e, na beleza visionária de suas idades vai apontado para os mais velhos os formatos que fazem na passagem do trem em sombras de arbustos.

”Criança vê tanta coisa em sombras que todas deviam ser videntes”, sussurra uma senhora com um livro Kardec a mão. Um jovem padre que está a sua frente solta um olhar furioso e abre alguns grunhidos que não deve ter sito ouvido pela simpática senhora. As moças adolescentes estão ainda dando seus adeusinhos para os passageiros.

Alguns se debruçam nas largas janelas de vagão e outros ficam por detrás fazendo gestos como que dizendo que a volta ia ser breve. Aos primeiros acordes sonoros da sinfonia que nasce na hora em que os reluzentes ferros gigantescos movem as rodas da locomotiva fazem à saudade voltar aos olhos de senhoras e senhores sentados em frente a suas casinhas de além trilho. Saudades de tempos em que, cabelos ainda negros se conheciam nas idas e vindas desta linda hora de encanto. O trem tem destas coisas que só quem o tenha ouvido rosnar suas entranhas nos trilhos pode discernir e fala.

Um sol de verão vai sobre os trilhos solitários da Estação de Macaé. Funcionários já iniciam desabotoarem os uniformes para refrescamento do tempo. O chefe esfrega as mãos e cospe seco, È hora de tomar umazinha. Já havia avisado ao subchefe da Estação de Carapebus do horário e tudo o mais, Estava dentro dos conformes. Seu companheiro “Pudin”, responsável pela carga e descarga também já deve estar com a garganta dando popadas,

“Pudin abre sua camisa deixando a mostra uma alegre barriga e sai com Dedeu rumo ao primeiro boteco”. Depois cada um segue o rumo de suas amizades.

O telegrafista Waldenyr Santos, irmão de Wilson, Lulu e Waldyr, frutos de uma das mais ilustres famílias ferroviárias, ainda passa alguns telegramas e puxa uma conversa que se tornará longa com o vendedor de passagens. Eles terão que ficar atentos para a chegada do Rápido das 17 horas.

Quando a locomotiva entra na curva que levará o trem até o bairro de Aroeira, João Barbeiro começa a sua Longa Mentira. Seja o que Deus quiser, bocejam falando seus amigos e jurado da longa historia.

Capitulo VI

A cidade fica mais triste nesta tarde. Como uma novidade que amina as horas que chegam e sai, o trem voltaria outro dia. Talvez outros passageiros ou alguns dos que passaram. Novas amizades serão formadas e novos rumos serão formados no acaso do momento. As pessoas sabem que este passamento diário deste Expresso é uma das poucas diversões que a comunidade tem. As meninas-moças tiram as roupagens e as colocam nos guarda-roupas. Talvez tenha que revesti-la para as sessões de cinema na 5a feira.

Todas sabiam que na cidade esta toda 5a feira tinham duas sessões no cinema local. As 7,00 e as 9.00. As meninas iam a das 7 e guardavam o lugar para os namorados. Sempre havia no cinema uma mãe, uma menina e uma cadeira levantada ou com algum objeto querendo dizer que “esta ocupada”. Eram assim estas cidades nos anos 40 e 50 enquanto o Expresso das 14 horas caminha apitando solenemente com destino a Estação de Carapebus.

Passageiros que iam para o Vagão do Restaurante ficam parados na porta e olham para o vulto de bigode ralinho que fala mansinho e firme. As janelas estão sem os olhares externos porque todos ficam querendo ouvir e ver os gestos que brotam desta magia que João Barbeiro se pretende dar nesta viagem.

Na Estação os últimos retardatários ainda com o homem do barzinho que reconta a venda de seus produtos. Motoristas discutem de devem voltar para o centro ou esperar de vez o Rápido. Já tomam conhecimento da ida do João Barbeiro no vagão de 1a e abre falação sobre o sim e não de sua façanha. “Chico Cachaça”, motorista das antigas que tinha este apelido e nunca tinha bebido nenhuma Cachaça, fala abertamente que o João Barbeiro ira realizar este Longo Feito.

Seu Araújo, sempre reservado, duvidava embora alimentasse a ilusão de ver tudo realizado. Seu Ford 29 estava ali e ele ficaria para esperar o Rápido. José de Moura Santos, Otacílio, Almerindo Gaspar, Manel Gambá, Benício e Zé Climaco pedem licença e voltam ao centro da cidade onde estacionarão seus reluzentes carros em frente ao único hotel na praça da prefeitura.

Carapebus não deixa por menos. Ruas cheias de gente a espera do Expresso. O Chico do Açougue já sabia da passagem de João Barbeiro e, como bom mentiroso alegre que ele era, já tinha dito que a Longa Mentira não passava dali de Carapebus. Afirmava e, disto alguns membros das famílias Tavares, Prata, Rosendo, Barcellos, Silvas e Borbas eram testemunhas. Todos estes homens torciam para que o João Barbeiro não parasse sua Longa Mentira Macaé - Campos em Carapebus. Afinal esta era a 1a vez que alguém teve coragem de prometer pregar esta comprida mentira.

O subchefe da estação de Carapebus esta eufórico. Veste-se com seu uniforme de gala. Anda de um lado para outro. Vai ao telegrafo e finge ler os últimos telegramas. O subdelegado, com um longo bigode branco, em cima da bota cano longo, deixa a mostra uma enferrujada garrucha. Alguém dum bar visinho grita e se esconde: “Garrucha é arma de corno”. O subdelegado fica firme. Se olhar lhe cai à carapuça. Novamente coça a cabeça nos cabelos que o vento vindo dos canaviais assanha e uma gota de suor lhe escorre na face. Alguns homens começam a se catucar sabendo que a subdelegada era quem se dirigiu a frase alta vindo do bar.

Como em Macaé as pessoas fazem da chegada do expresso momento de magia. Embora Carapebus seja um local de gente ligada à agricultura e pecuária muitas pessoas iam e vinha nos trens. Algumas fazendo compras em Macaé e outras a Campos. Um povo valente e ordeiro. Tendo suas raízes culturais oriundas dos Índios Urutus e alguns remanescentes dos Goitacás zes de Tamoios esta gente de pele queimada pelo sol era conhecida em toda a região como os melhores cavaleiros. Muitos ciganos vieram e se fixaram em Carapebus ou Capelinha do Amparo. Assim como o Bisavô do autor desta historia, Emilio Tavares Pinto da Silva que era neto de ciganos e sertanista, outros homens de testas embranquecidas pelo uso constante de chapéus, tinham origem Ciganas ou de Índios Urutus. As histórias de Cadete de Araújo um jovem bandoleiro que habitou a região era sempre citada nas rodas de homens nas ribeirinhas de córregos e rios. Os Tavares e os Pratas sabiam contar detalhes porque seus pais vivenciaram o acontecimento.

As ruas e vielas de Carapebus estavam cheia de gente. Sempre que o apito mágico do trem soa na planíncie o encanto toma conta de todos. Não é só em Caeapebus não. Todas as cidades do mundo este encantamento chega da mesma forma. Um velho ferroviário Inglês que veio montar a Estrada de Ferro na Região e que se casou com uma linda cabocla de nosso sertão dizia sempre isso. Onde quer que os trilhos passam esta magia aparecia nos olhares de todos. Mais acentuado nos olhares de crianças com seus acenos infantis dirigidos ao Maquinista.

Cavalos amarrados em paus ao longo da estação, malas e embrulhos empilheirados na extensão da plataforma davam ao local um ambiente universal. Parecia qualquer cidadezinha no interior da Ingraterra ou de algum Condado Chileno. A igualdade nas saudades e magia socializava os momentos e os trilhos deviam levam a beleza de encantos únicos.

Era como que num hipnotismo coletivo as ondas sonoras dos bater dos trilhos em sintonia com o apito se amalgamassem aos olhos infantis e determinasse a existência do belo.

Dentro do vagão de 1a João Barbeiro esta falando suave e compassada mente. Aumentando o numero de pessoas em torno de sua fala ele é observado até quando recoça o nariz vitima de algum mosquito vindo dos campos verdejantes que banham os dois lados da entrada do distrito. Alguns afagos verbais de João dirigidos a um grupo de crianças atentos a sua história, deixa escapar uma frase baixinha de uma senhora de cabelos brancos, muito bonita e alegre. “““ “““ Ela balbucia ao ouvido aberto de seu esposo:” Quem meu filho agrada, minha boca adoça”. Motivo alusivo à atenção que o João Barbeiro tinha ao dirigir aos seus filhos.

O entardecer de Carapebus tem a imagem do entardecer em toda região por aonde este comboio de trens sempre chega. Pássaros ninhando em moitas e arbustos falam do respeito à natureza que os moradores demonstram ter.

Dentro do vagão a longa historia continua sendo contada momento em que o trem diminuí sua marcha. Como freios metálicos os gritos da composição se mistura com os gritos de dezenas de crianças, que a exemplo de Macaé saúdam o maquinista elegantemente vestido e com ares de herói. A importância da estrada de ferro fazia nascer outras importâncias em torno de seus trilhos. Carapebus era uma destas fases importantes na via férrea. Para sua comunidade eram deslocados moradores de Conceição de Macabu, Quissama, e de toda região de fazendas e sítios. Apenas Cabiúnas competia por que lá também tinha passagens obrigatórias dos trens.

Poucas paradas mais tinham grande importância social na região. Por isso as conversas nos cantos da Estação giravam em torno do pregresso que a estrada de ferro trazia e da forma barata de sua presença nas comunidades. Um jovem que tinha estudado em São Paulo e que estava de férias em Capelinha do Amparo dominava uma roda de conversa cumprida. Cercado de outros jovens de 18 a 25 anos ele dizia de uma conversa que tinha ouvido falar sobre o fim da Estrada de Ferro em pouco mais de 30 anos. Dizia que havia um grande interesse de gente ligada a rodovias e fabrica de automotivas objetivando ganhar bilhões de dólares e desativar as ferrovias.

Para alguns mais velhos este jovem devia ser mais um destes loucos cabeludos que inventam “lorotas para boi dormirem”. Sua fala ia sendo ouvida e entendida por muitos meninos encostados no parapeito de uma casa velha perto de onde seria erguida a Igreja Matriz pelo teimoso Frei Baltazar. Assim como poucos acreditavam que este distrito iria virar cidade um dia, este papo de acabar com a estrada de ferro era uma utópica conversa fiada para os que esperavam o Expresso.

Como acreditar que um dia isto iria se acabar? Onde que teríamos uma viagem cheia de vagões e alegres ruídos neste mundão de terra que vai do Espírito Santo até o Rio de Janeiro e do Rio até São Paulo? Só mesmo na cabeça desvairada deste menino que mais parecia “um hippie dos futuros anos 70” que isto tinha cabimento.

Onde já se viu, resmungava um senhor de cabelos caído na testa e com óculos negros lhe dando um ar de culto. “Este rapazola ta dizendo que vem ai um tal de petróleo que vai acabar com a ferrovia e enriquecer os americanos. Ele está dizendo até que irá acabar a praia de Imbetiba que, com suas areias medicinais vem curando dores nas pernas das pessoas”. Falava e levantava uma velha bíblia negra onde a noite lhe serviria de motivo para arrecadar um troco para sua igreja e enviar a sede nos Estados Unidos.

“Este rapaz dever ser um destes comunistas que falam num mundo melhor e já estão infiltrados em Macaé”. E gritou: ”Oremos pela sua alma”...

Capitulo VII

Os verdes campos que margeavam a entrada de Carapebus estavam belamente balanceados ao vendo que vinha de Cabiúnas e rompia matas e arbustos. A imponência do Expresso se torna cada vês mais bonita e elegante. Locomotiva movida a vapor, fumaça indo aos céus riscando dezenas de formas de esculturas que eram vistas e apontadas por olhos atentos de criativas crianças, tudo se aproxima da Estação, agora totalmente dominada pela ânsia de ver o trem parar. Em Carapebus não terá abastecimento de água, embora tenha sempre uma caixa de água cheia com o pano longo e de borracha para num caso de suma emergência.

Contam os mais antigos que um belo dia, lá pelos inícios dos anos 40, uma locomotiva, vindo de Macaé quase pegou fogo. No corre-corre toda comunidade socorreu com baldes, água em lombo de burro, charretes e até o Fordeco do Dr. Antonino Manoel Cure, médico que atendia os moradores teve que ser acionado para apagar. Felizmente tudo não passou de um grande susto e, foi daí que os Ingleses resolveram por em Carapebus uma caixa de água de abastecimento de locomotivas.

A diminuição da composição foi seguida em compasso pelo João Barbeiro em sua fala. Os homens de, sobretudo e mulheres com seus leques coloridos não conseguiam desviar os olhos de seu corpo magro que rodopiava elegantemente no compasso de sua voz melodiosa e rouca.

Um jovem juiz que ia assumir a comarca de Campos, ladeados por outros dois advogados olhava embevecidos à altivez sonora deste homem simples e deixava fluir um pensamento que era captado pelos seus colegas. Este pensamento levava no silencio de seu entendimento de olhar o quanto de inteligível a arte da fala podia flui de tão desconhecido ser. Jamais poderiam imaginar da Longa Mentira que estava sendo realizada por este simples e elegante Barbeiro de Macaé.

Acostumados à luta e pelejas jurídicas onde sempre uma grande mentira leva a condenação e absolvição em autos e processos eles olham, sem saber o contraponto de suas verdades num mito humano que não deixa que nenhum olhar se desvie de sua falação e gestos compassados.

Vendedores de laranjas, goiabada, marmelada, doce de leite e queijo começam seu mexi mento corpóreo em busca de uma melhor posição na plataforma onde o Expresso vai parar. Espertos, como qualquer comerciante em todo o mundo capitalista de consumo, espreitam os vagões de 1a classe. Que adianta oferecer seus produtos a quem viaja na 2a classe? Acabara tendo que dar alguma coisa a alguma criança pobre que ainda não tem consciência do que significa diferença de classes. Isto acontecia sempre. Ao oferecer os doces em tabuleiros, as pobres e inocentes crianças da 2a classe esticavam as mãos e os dedinhos iam logo pegando algum doce ou salgado. Pena ou não o fato é que muitos que vendiam nas estações não queriam vender na 2a classe. Ou porque lembravam de seus filhos pobres também em casa ou porque não queriam mesmo perder algum produto.

As laranjas eram todas colhidas nos quintais e tinham o saber do adocicado natural que a natureza fornece. As laranjas Bahia eram sempre escolhidas pelos passageiros porque tinha um umbiguinho no seu final onde se concentrava toda a doçura de seu conjunto. A venda de doces e frutas tinha que ser rapidinho porque o trem demora pouco e o telegrafista tinha que avisar a estação de Dores de Macabú tin-tin por tin horário e lugares vagos. O subchefe da estação ainda empurra alguns pivetes que gostam de pegar carona até a Praça Cordeiro.

Ele avisa que num ano passado um menino de Itakira caiu e fraturou a clavícula. Foi levado as pressas para Macaé e teve que ser transportado para Niterói. Os médicos do Samdu de não sabiam como fazer com o menino que teve os ossos espatifados de encontro a um poste de pau. Em Niterói, num hospital de nome Antonio Pedro ele foi operado, colocaram nele osso de carneiro e eles hoje faz campanha no Escoteiro contra se pegar carona em trens.

No vagão restaurante um magro homem, sentado atrás de um improvisado balcão, olha desesperado para dentro de sua caixa de dinheiro. Seus dedos longos, magros e pontiagudos contam e recontam as férias desta viagem que começou em Barão de Mauá, no Rio de Janeiro e vai ter seu término em Cachoeira do Itapemirim. Sua mente fica meio atordoada de pensamentos até então não sentido. Sempre faturou “uma grana de responsa” de Macaé até Carapebus e não estava entendendo o porquê de muitos passageiros que vinham com destino ao carro de comidas estavam ficando no vagão de 1a. onde parece que até os homens da ferrovia encarregados da manutenção e venda de "tictes" estão lá.

Nem imagina que isto seria pior para seu faturamento porque o João Barbeiro continuava a sua fala e seus gestos hipnóticos iam absorvendo mais passageiros na escuta de sua Longa Mentira Macaé-Campos.

Malas em mãos calejadas, crianças em colos de mães, abraços de quem deixa, afagos em quem vai. Este vai e vem de sentimentos povoa toda a periferia natural da pequena estação de Carapebus quando a locomotiva deixa escapar o seu ultimo suspiro da longa caminhada. Maquinista fecha os últimos locais onde o esquentamento saia e fazia tremular fumaças em formas de desenhos e se apronta para descer uns cinco ou quatro degraus que lhe dará tempo para um rápido descanso mental e um pequeno pape amento com algum colega de ferrovia. Maquinista sempre trans boas novas, afaga-lhe os ombros um velho guarda =freios. “Conte ai o que se passa na capital”.

Os olhos amigos destes dois homens se cruzam e, numa fração de segundos falam dentro de si das boas novas que serão repassadas a outros companheiros. Sindicatos estão sendo formados em todas as capitais e era preciso fortalecer alguma coisa no interior. Falam baixinho porque sentem proximidade do Subchefe que vem desconfiado ao encontro deles. Antes da formalidade do atendimento ao subchefe, um rápido aperto de mão e o jovem ferroviário, olhos castanhos, pele queimada pelo sol, recebe um pequeno papel onde estão as ultimas novidades que foram passada em Macaé e que contem também alguns textos filosóficos de Lênin.

Passos largos levam este jovem ferroviário a um tronco de arvores. Senta, pita um cigarro de palha colhida em um pé de fumo no quintal de sua tia. avó e abre cuidadosamente o papel embrulhadinho. Seus dedos pequenos desfolha esta preciosidade onde o velho Lênin explica as razoes principais da luta e classe e a subida ao poder do proletário. Em Macaé o jovem guarda-freio já copiava a mão os principais textos e se reunia com companheiros nas longas e quentes noites do verão tropical.

O entra e sai de passageiros do Expresso retarda ainda mais o comboio. Nervosismo na cara fechada do Subchefe e alegria em quem gosta de trem parado em Estação. As charretes deixam poeira na estrada e rumam com destino a Rodagem ou, quem sabe, Quissama. Cavaleiros enchem as selas de pacotes de pano, embrulhos e garupam crianças na frente da sela. Mulheres olham pela ultima vez os passageiros mais elegantes e tentam um piscar de olhos nas escondidas dos maridos que bebericam aguardente num tonel nos cavalos. No vagão de 1a onde João Barbeiro esta falando parece que o tempo parou. O próprio ar se torna fresco apesar da parada do ventinho que entrava com o trem em movimento. Tudo é êxtase e muitos teimam em não desviar os olhos. Neguinho nem vai no banheiro. Prendem mixo e muitos nem fazem caso da vontade de fazer cocô . Velhos e crianças soltam alguns peitos sorrateiramente. Prendem na bunda o gás para que ele não faça nenhum barulho e despertem risos nas pessoas. Sabem que isto fará com que o peido saia muito mais catingoso e fedorento. Mais "seguram" para que não seja perturbada a fala de João Barbeiro.

Capitulo VIII

No colégio Público em Macaé, Canela de Pau ainda esta no pátio. Após as aulas os meninos vão para um campinho em busca de peladas e caça de passarinhos. Se outros não gostam de peladas ficam jogando bolebas ou indo roubar algumas frutas nas grandes chácaras das cercanias do colégio. São abacate, manga rosa e espada, abiu, carambolas, cajus vermelho e branco, araçás, abricós, mexerica e jambo de duas cores. Estas frutas são nativas em todos os quintais de Macaé e as crianças ficam horas e horas na sua busca. Muitos dos moradores nem ligam quando eles chegam a fim de deste pequeno ganho.

Até gostam porque a presença infantil alegra as chácaras. Apenas o Velho Coutinho evita esta debandada infantil, Alega, e disto alguma razão devia ter, que as crianças deixam a maior parte das frutas jogadas no chão e usam setas para matar passarinhos. Seu Coutinho era de uma das mais tradicionais famílias do centro da cidade e tinha uma simpática careca que lhe rendia a carinhosa alcunha de “Seu Coutinho Careca”.

Ele mesmo atendia este afetivo apelido nas ruas saudosas esticadas matinais até a praia do Forte onde se banhava nas tardes de outono.

Despedidas, beijos, afagos, muita lagrima derramada e é dada nova partida do Expresso. Desta vez o destino é Dores de Macabú. Os loiros cabelos encaracolados e ligeiramente de picos que recebem o boné de Maquinista estão ainda molhados pelo lavar que teve nas águas puras da bica Carapebuense. Sua missão estava cumprida e seus olhos verdes já se fixam nos trilhos. Mentalmente ele vai recordando os momentos de angústia que sempre tomava conta de seus velhos companheiros ferroviários aposentados. Seu pai mesmo era um deles.

Ingressou na Estrada de Ferro, viu os primeiros trilhos serem fincados ao chão, ajudou assentamento de dormentes. Quebrou mata, foi mordido de cobras, perdeu um pulmão e morreu esquálido com um salário que mal dava para sua mãe comer e alimentar mais 5 meninos. Não fosse a ajuda de um tio, irmão de seu pai, também da ferrovia, ele não estaria hoje levando tanta gente para lá e para cá como Maquinista. Deu duro e chegou a onde esta mais não vai deixar-se morrer como centenas de companheiros de seu pai. Aceitou a idéia do Guarda-freio de Macaé, fez um pequeno curso e estava agora lutando por melhores condições de vida para toda a classe operária.

Respira fundo e da a ultima olhadela para a estaçãozinha de Carapebus e acena para as ultimas e retardatárias crianças que estão no jardim da futura Igreja Matriz. Revira os bolsos de sua farda de comandante do comboio de ferro, puxa a corda do apito e assobia uma velha canção de ninar. Lembra de seus filhos, uma menina de quatro anos e um menino de dois. Perto do Barão de Maia eles moram.

Bem na subida do Morro da Mangueira onde sua mulher nasceu e foi criada. Na ida ao bolso confirma que ainda tem mais dois papéis. Um será entregue, na Estação de Dores a um jovem que coisa dos trilhos que estará com uma blusa azul e outro a um senhor de ternos e chapéu branco em Campos. Este homem de terno vai lhe dar outros quatro papéis que ele deverá deixar em Mimoso do Sul e em Cachoeira. Sua alegria era tanta que nem notou que tinha que abastecerem mais algumas achas de lenha na caldeira e soar mais intensamente o mágico apito.

No vagão restaurante reina um vazio. Poucos são os que se arriscam deixar de ficar atento ao que fala o João Barbeiro. Alguns passageiros do vagão de 2a são avisados que podem ir ao Restaurante, Ficam atônicos. Como? A gente pode ir comer lá? Porque isso se lá só pode ir o pessoal da 1a classe? Vocês podem ir sim, afirma o homem que fura as passagens. Ele veste um sobre-tudo azul que esconde sua rota e puída camisa branca. “““ “““ Leva as mãos ao nariz para não sentir cheiro de mijo de velhos e crianças e, quase numa ordem, fala bem alto:” vocês podem ir todos comer o que quiser e será tudo de graça”. A correria dos pobres parecia igual felicidade de pinto no lixo. Muitos saiam com sacolas, marmitas e outros utensílios. A oferta era porque o trem não podia chegar a Campos com mantimentos prontos.

Outro concorrente iria assumir de Campos em diante e urge que a comida seja acabada ou jogada aos porcos. Dezenas de pessoas passaram momentos de suma integração com as delícias que aos ricos eram oferecidas.

Dores de Macabu esta próximo. A tarde já começa a sentir um frescor da tardinha que vai dar lugar a noite de lua. Canela de Pau está prestes a para casa. Sua vontade era deixar de estudar de dia, fazer uma prova numa escola da Leopoldina e ser ferroviário. Enquanto caminhava ao vento, vinha relembradas suas discordâncias com determinadas atividades em sua curta vida de menino.

Não aceitou a hierarquia burguesa que tinha lhe sido imposta no Grupo de Escoteiros e saiu de lá, a toque de caixa como se diz nas rodas dos mais velhos. Na Igreja, nas aulas de catecismo tinha sido também objeto de severas criticas o que lhe ocasionou outra saída brusca. Estava satisfeito com tudo isso porque Canela de Pau se sentia mais maduro não tinha nenhum arrependimento destes dois saimentos em sua vida. Sacristão ele gostava mais no dia em o padre descobriu que lês estava comendo as hóstias sei nome foi riscado das celebrações e Canela de Pau não pode mais ir às missas ajudar os padres. Por sorte o padre não tinha descoberto algumas expropriações feitas durante o recolhimento de dízimos e alguns goles de vinho branco tomados na solidão de manhas quando limpava a sacristia.

Enquanto isso, Guarda-freios ia se doutrinando nas suas idas e vindas pendurados em trens da Leopoldina.

Conversava com um velho Ferroviário de nome Ramialho. Ramialho era carpinteiro também. Foi explicando ao jovem Guarda – freios das mentiras milenares das Igrejas que iam bitolando as pessoas de geração em geração. Falou do São Jorge na Lua que ele acreditava e até via. Explicava tudo isso em noites que faziam nas mexidas de trens e locomotivas. Estes ensinamentos serviram de base para que o jovem começasse a ler alguns textos de Lênin e ser, ainda com 23 anos, um grande militante na transformação da sociedade.

Enquanto Canela de Pau com 13 anos rompia com padrões sociais mais ainda acreditava nos valores da eternidade que seus pais e avós lhe incutiam a mente, Guarda-freio, aos 23 anos jogava para longe os ensinamentos de seus pais e familiares mais velhas e caia fundo nos estudos do Materialismo.

A Estação de Dores de Macabú ficou para trás e à tarde fresca vem com cheiro de bagaço de cana pisado. As Usinas despejam um vinhoto mal cheiroso que entra por entre as janelas do trem e faz com que as pessoas pensem até ser algum desprevenido peidinho infantil O odor toma conta de toda a composição. São ao todo 18 vagões e com a locomotiva somam 19. Sete dos vagões são de carga. Levam bois, telhas. Algumas madeiras para cercas de pinho e muitas mudanças de gente que se transferia para outras localidades. Alguns eram ferroviários que vinham de Bicas para Campos ou de Macaé pata Cachoeira.

No Restaurante todos riem e falam alto. Tapinhas nas costas do dono do pedaço comercial o fazia ficar meio puto da vida com as intimidades dos pobres com ele. Sentia-se um burguês de alta classe porque, além de ter a concessão do uso do Restaurante de Barão até Campos, tinha um sobrinho Engenheiro que sempre estava na mesa “dos homens”, se referindo aos Ingleses donos da Estrada de Ferro. Não admitia e até ensaiou uns cascudos quando um menino pobre lhe puxou os fiapos de uma barba rala e relaxada. Só não conseguiu seu intento porque, ao olhar o menino, viu que estava ao lado de um rosado homem rude de braços musculosos e pernas arcadas. Além do mais o olhar do homem parecia dizer que estava doido para lhe quebrar os últimos dentes de uma boca que tinha três falhas frontais.

A cidade de Campos está próxima e, no vagão de 1a, João Barbeiro fantasia suas dissertavas e alguns ocupantes da 2a, classe, vindos do vagão Restaurante entram também e ficam sentados no chão se misturando aos que já estavam inebriados pelo domínio que João despertava desde que o Expresso tinha saído de Macaé. O cheiro de vinhoto se torna mais forte e a Locomotiva, elegantemente, entra em território dos Goitacás.

As pequenas casas ocupadas por funcionários das usinas se abrem com suas janelas enfeitadas de moças e rapazes que olham orgulhosos a Maria Fumaça e sua longa esteira de 19 vagões. Este deve ser o grande momento que marca a sutileza do belo que o olhar admirado nos coloca a vista. São gente simples, operários mesmos e seus filhos que saúdam, a exemplo de outras estações este lindo bicho de metal e ferro com suas rodas barulhentas e um apito sonoro.

Carros de bois. Vindo das Fábricas de rapaduras, de biritas, melados e um povo bairrista ao extremo.

Campos é a cidade mais populosa que o Expresso chega desde que saiu de Barão de Mauá. Aqui esta quase toda a parafernália de oficinas que fazem reparos e reposições. Também é onde o Expresso demora mais tempo. Alem de abastecer de água a Locomotiva os ferroviários entram, vagão por vagão e fazem inspeção em todos os entroncamentos que ligam as composições entre si. Além do mais alguns vagões ficam em Campos e a composição segue para o Espírito Santo com novos carros acoplados. Este processo de ida e vinda de novos vagões não demora muito e nem chega a ser percebido pelos passageiros. Alguns desvios de linhas já pré - realizadas faz com que a harmonia deste trabalho artesanal e puro se transforme numa tarefa alegre e vitoriosa para quem a realiza.

Capitulo IX

Como em toda estação a figura do Chefe de estação e do telegrafista tem um destaque quase igual ao do Maquinista. Todos se sentem responsável por esta magia que o trem desperta. A Estação de Campos é grande. Quem sabe um pouco menor que Barão de Mauá mais sua importância se iguala a Barão de Mauá e a concentração de ferroviários é bem mais atuante. Se em Macaé as oficinas de Imbetiba impulsionam a vida das maquinas e suas peças aqui em Campos a parte da burocracia e pessoal se torna mais acentuada. Todos que são admitidos na Estrada de Ferro Leopoldina e na Escola Ferroviária 8-1 Senai, são obrigados a prestarem exames de saúde e vista em Campos daí se vê a dimensão de sua importância.

João Barbeiro sabe que esta chegando a sua grande hora, de soslaio olha com elegância seu relógio como se tivesse tendo a certeza da hora sem mesmo ter olhado. Faz um pequeno gesto de caricias para um menino que se junta aos seus pés e, sem perder a elegância fala com mais pausa aos que olham estupefatos.

A diminuição da locomotiva se une ao lento compasso de sua voz e trejeita ainda mais seus movimentos de mãos e dedos. Até uma pequena coceira que João Barbeiro tem nos dedos, adquiridos, quando fez uma barba suja de um carcereiro em uma delegacia, ele evita coçar.

Até parece que usa a Ioga ou alguma técnica de Doin para mentalizar e não ir com as mãos a coceira. Imagina se ele se coça ai todos iria querer fazer algo e perderia a sua aposta na Longa Mentira Macaé – Campos. Manter a uniformidade das atenções era o forte de técnica psicalistica.

Locomotiva passando pelos bairros que cortam os canaviais da terra de Benta Pereira e José do Patrocínio com acenos e alegres levantamento de mãos na saudação do trem e, se aproxima finalmente à hora da grande vitória que deverá consagrar este alegre barbeiro como um dos maiores mentirosos de toda a região e quiçá do mundo...

Vagando em suas memórias ele lembra que podia ter sido tanta coisa na vida além de barbeiro. Com esta capacidade de mentir e se fazer ouvir com tanta confiança teria sido um vereador, um prefeito e talvez até quem sabe um deputado ou governador. Advogado então nem se fala, embora esta profissão ele tenha certas reservas por ter ouvido falar, por um cliente que Lênin tinha afirmado que, advogados, nem o do partido..

Aproxima-se a hora de sua finalização teatral. Dos trilhos já se podem ouvir com barulhos de freios e, a algazarra de vendedores de doces e de chuviscos, já está entrando pelas janelas do trem e alcançado os ouvidos. Em outros vagões as pessoas juntam malas, crianças e animais no preparamento da descida. A maioria dos passageiros que, embarcaram no Rio de Janeiro, se dirige a Campos. Também ficam nesta cidade, de lindas histórias e passagens históricas, os trens de carga.

O jovem Maquinista volta a levar suas mãos aos bolsos no fardão azul. Sabe que vai ter que passar a um companheiro os informes que recebeu durante a sua longa viagem. Este que vem ser o seu homem de receber o papel, ele não conhece ainda. Por medida de segurança ele não pode aparecer no contacto alegre como os demais. Sua presença em Campos esta sendo monitorada por um Comitê Central e ele será reconhecido pelo Maquinista por alguns detalhes que foram dados verbalmente.

Todo o aparato está pronto para execução final com o encostamento do trem na plataforma de Campos. Chefe de estação, Telegrafistas, carregadores de malas, carros de praça, vendedores de jornais e muita goiabada cascão. Uma grande cidade para sua época, Campos tinha os melhores jornais da região e um dos mais antigos do país. Berço de uma cultura avançada e tento em suas mulheres a moda usada nos grandes centros de Paris e Londres.

Grandes fazendas de gado, progressistas usinas e bons políticos de influencia colocava a cidade num patamar cultural, político e social bem alto. Alguns barbeiros de Campos já sabiam da chegada de João e comentavam de boca a boca, de ouvido a ouvido e nariz a nariz sobre esta Longa Mentira.

Alguns campistas mais bairristas já afirmavam que o João Barbeiro tinha nascido em seu território e se mudado para Macaé. Um retrato três x quatro dele, corria de mão e mão e vários moradores diziam que o conheciam da cidade. Falava, um velho vendedor de verduras no Mercado Municipal que ele era natural de Travessão de Campos e seu pai era um senhor de cabelos brancos que tinha uma Banca no Mercado. Afirmava que ele tinha ido para a cidade de Washington Luiz Pereira de Souza para servir o Exército e lá foi ficando. Diziam até que ele tinha a profissão d sapateiro ou, sei lá modelista de calçados.

Outro homem de barbas longas e, que sempre pregava algumas pequenas mentiras na Praça São Salvador, com uma bíblia, dizia que o João tinha sido seu ouvinte em outra praça onde ele pregava suas lorotas. Olhando bem a foto afirmava que era da Avenida Pelinca, em frente ao grande hospital, que ele o lembrava ter conhecido.

Todas as pessoas que freqüentavam a “Rua do Homem em Pé” no centro de Campos tinham uma história diferente para dizer do homem que estava prestes a descer do Expresso e conseguir o grande feito de ter pregado a Longa Mentira Macaé – Campos.

Na Rua do Vieira muitas raparigas falavam de que o João já tinha passado por lá. Meninas vindo de Vitória do Espírito Santo sorriam e falava alto e em bom som que ele já tinha ido a Vitória e freqüentado a zona do baixo meretrício de nome “carapebus” local de onde ela lembrava dele. A foto três x quatro passava de mão em Campos, enquanto na Estação do Caju os ferroviários aprontam os últimos detalhes profissionais para que o desembarque e embarque se realizem de maneira que nada seja ofuscado.

Um alegre e simpático motorista de Praça com o elegante nome de “Pé de Valsa” disputa com outros 25 motoristas a preferência do João Barbeiro na escolha de quem o levaria a um velho hotel perto da Igreja de São Salvador. Um recado vindo no noturno do dia anterior já tinha escolhido o “Pé de Valsa” que seria o encarregado de levar o João para um pequeno descanso no centro de Macaé. Antes ele deveria ir no Bar de nome Francesa para de deliciar de torradas e chás que lhe foram doadas por dois campistas de nome Piquira e Dílson Batatinha.

Em Macaé os relógios de uma grande parte dos moradores do centro são consultados de minuto a minuto. Querem saber se foi realizada façanha e como seria a recepção em Campos. Uma grande faixa branca era estendida na Avenida Ruy Barbosa, conhecida como rua direita:

“João Barbeiro é nosso”. Parecia até campanha de petróleo. “Ele é macaense de coração.” “Abaixo o oportunismo”. Estas faixas eram uma alusão aos campistas que queriam aproveitar a Longa Mentira Macaé – Campos como sendo um feito de um de seus filhos. Vários pescadores diziam na beirada do cais do Mercado, que ele tinha nascido em Macaé. Era filho de uma mulher desdentada, magra e que tinha uma tosse estranha. Esta mulher tinha tido mais 9 filhos com alguns pescadores de São João da Barra. Ela teria morrido tuberculosa e o menino levado para São Pedro da Aldeia ou Cabo Frio, num barco de pesca. De lá ele foi jogado na praia de São João da Barra e criado por um casal de velhos que se mudou para Guarús e depois para Travessão de Campos.

A dúvida era se o suposto pai de João seria um pescador de Marica ou um ajudante de caminhão que tinha vindo de Recife e ficado na região da Barra do Rio Macaé. Diziam que este homem andava nas ruas de Macaé em companhia de um tal de “Papa-Lambida” que vendia papas e era voz corrente em toda a região que eles lambiam a papa para saborearem o “gostinho da canela em pó”. “Certo que isto é verdade ou não, afirmava uma senhora de 8O anos:” Eu morro aqui no “buraco quente”, apontando para uma viela estreita que só entra bicicleta. “Eles andavam juntos mesmo. Se eles lambiam as papas de milho, eu não sei. O que sei é que as papas vinham sempre sem a canela em cima e muito brilhante, como se de fato tivessem sido lambidas”. Afirmava ainda que seus filhos e netos ela proibiu de comer as papas que o Papa Lambida vendia.

Parecia que os vultos históricos destas duas cidades tinham sido jogados ao lixo e eles queriam porque queriam ter a honra de terem sido o berço natal deste homem que, neste exato momento, sentia-se aliviado com o trem chegando à plataforma e o seu feito sendo realizado a contendo.

Vagando em recordações João nem imaginava que era uma disputa acirrada e que até camisetas com seu retrato eram distribuídas a jovens e moradores da região. “João Barbeiro é nosso”, Hei, hei, hei... João é nosso Rei. Milhares foram espalhados no Parque Leopoldina e as crianças faziam pipas com seu retrato e espalhavam panfletos em todos os bairros campistas.

Na Estação do Caju uma multidão começa a invadir a plataforma. O chefe de Estação chama os guardas ferroviários de roupa caqui estes entram para tentar ordenar o ambiente. Banda de musica Apolo, estudantes de um colégio Batista, meninas do Salesianos todos empunham palavras de ordens.O tumulto toma conta da Estação.

Um bêbado que sempre era proibido de ficar na estação sentado nos bancos por ordem do Chefe da Estação, aproveita a confusão e da um ponta-a-pé na bunda seca do Chefe da Estação que não acha o autor e cai de bordoada num pobre dentista que estava esperando o trem para ir para Mimoso do Sul. O dentista reage e o chefe da estação é jogado no chão e socorrido por 4 guardas que, rindo acham que foi bem merecido ponta a pé na bunda.

Os passageiros que estão aguardando a parada do trem não estão entendendo nada...

Capitulo X

A luta por melhores condições de vida e a busca por uma sociedade mais humana e justa fazia parte do dia de centenas de ferroviários em todas as estações e oficinas de reparos de peças. Salário baixo e condições precárias de trabalho iam criando a cada dia mais condições de organização e forma de lutas. Os velhos ferroviários contavam aos mais jovens as terríveis privações na alimentação e até na hora das necessidades fisiológicas. Uma grande vala de uns 25 centímetros de largura e uma profundidade de meio metro servia de local para se defecar nas oficinas de Imbetiba.

Latas com águas eram jogadas após as cagadas e mijadas e as merdas e urinas iam vala abaixo até alcançar o viaduto por baixo da estrada. As refeições tinham que ser em casa ou levar de marmita. Alegria mesmo era na chegada do trem pagador em Imbetiba. Desviado do trilho principal uma variante levada o vagão ate os fundos das oficinas.

Uma velha locomotiva trazia os holerites que eram chamados nominalmente por um ferroviário que trabalhava no escritório. Estes sempre de gravatas iam chamando um por um. Os atestados e as faltas povoavam as incertezas na abertura destes soldos, suados e parcos. Qualquer falta, mesmo depois do almoço por um motivo qualquer o trabalhador perdia o sábado e o domingo.

Os atestados ainda podiam ser rejeitados principalmente se forem de “cefaléia”. Os patrões e os chefes não acreditam que barulho de malho em bigorna em tenaz com ferro quente não dava dor de cabeça não. Sempre era e ainda o é a mente do explorador. Nos seus gabinetes fechados não entendiam a dor de uma cabeça jovem exposta a constantes porradas de martelo e chapa de aço nas caldeirarias e ajustagens nas oficinas de Imbetiba...

Canela de Pau esta querendo mudar de colégio. Gosta de ver, nos dias de paradas oficiais os alunos da Escola Ferroviária desfilar. Banda bem harmônica. Uniforme em forma de fardas e o que mais lhe chamava o desejo interior era o uso de um quepe azul marinho e outro de cor bege que os alunos usavam. Treze anos é a idade que pode ser prestada as provas. Sabia que ia concorrer com muitos filhos de ferroviários que, num empate de notas tinha preferência na escolha. Canela de Pau ia passar a estudar a noite e prestar prova para a Escola Ferroviária 8-1 Senai. Além disso ele ia receber um salário que podia ajudar sua avó na manutenção da casa. Sua irmã continuaria no colégio nas tardes e ele iria cursar o segundo ano à noite...

Guarda-freio sabia da responsabilidade que o Maquinista tinha na entrega do papel na Estação do Caju em Campos. Ele que tinha recebido a incumbência do Comitê Central estava por demais impaciente. Em Rocha Leão, quando o Expresso deu pequena ´paradinha ele que tinha sido o responsável. Disse ao telegrafista que havia algo de estranho num trecho que vinha em direção a Rio Dourado e este havia passado para o Maquinista. Os papéis tinham que estar nas mãos do companheiro de Campos antes que alguém desconfie do trabalho que estava fazendo. Em Carapebus ou Dores foi muito perigosa à presença do subchefe quando da entrega que continha textos de Lênin. O governo, a chefia da Leopoldina e os Ianques estão pagando a peso de ouro e promoções e grana quem descobrir ou indicar onde parte as comunicações. Pensava na mulher e filhos do Maquinista e em outros companheiros que cairiam nas mãos da repressão se algo não sair como esta planejado.

O homem de terno branco, tipo malandro da Lapa e dos puteiros da Boca do Lixo paulista é quem vai receber em Campos o papel e o fazer chegar depois a outras mãos. Ele “esta “fantasiado” assim de Malandro” para não despertar suspeitas. Seus óculos escuros, fechando vem os olhos dariam a impressão se tratar de cafetão que esconde os olhos vermelhos cheios de maconha ou cheiro. Os seus dedos finos e unhas longas fazem parte do plano.

Os sapatos de bicos finos e com um corte na cor de couro de cobra faz deste companheiro o protótipo do malandro dos anos 40 4 50 muito comum nas cantigas de Nelson Gonçalves e Noel Rosa. Para que não houvesse perigo na hora que o Maquinista fosse passar ao fantasiado companheiro as recomendações escritas, tudo se daria na hora em que o Maquinista fosse tomar café na Estação e comprar o “Monitor Campista” um jornal da cidade. Neste momento ele será abordado pelo “Malandro” que lhe oferece outro jornal de nome “A Noticia” nesta conversa de jornal para lá e para cá mensagem é colocada dentro e o companheiro sai andando gingando o corpo para lá e para cá fumando um longo cigarro de palha.

Guarda-freio depois iria pegar o noturno e esperar em Cachoeira uma nova mensagem que traria alguns nomes de companheiros de grande confiança para reiniciar a luta dentro e fora da ferrovia.

Finalmente o Expresso pára na Estação do Caju em Campos. Quase sem ser notado João Barbeiro deixa de escapar sua fala. Mesmo assim as pessoas continuam paradas. Olhos fixos num infinito distante. Como que todos estivessem num longo sono. Só se percebia que estavam acordados porque os olhos permaneciam abertos e o brilho falava e dava entender que estavam acordados. João Barbeiro sai de fininho. Passos pré-anunciados em sua mente, caminha em direção a saída do Expresso. Ele mesmo parece estar num transe profundo. Diria até que seus gestos e passos estavam mecanizados. Os braços mantinham o esticamento elegante o os lábios continuam molhados por salivas que vinham e voltavam quando estava contando a Longa Mentira Maca –Campos. Dentro do vagão as pessoas continuavam paralisadas.

Um negro menino da uma cagada no colo do Juiz que “não ta nem ai”. Ainda acaricia a cabeça negra do menino. Um preso algemado que se dirige para Cachoeira aonde vai a julgamento é abraçado pelo policial que lhe faz guarda e recebe o oferecimento do promotor das chaves de suas algemas.

As mulheres continuam fieis a seus maridos e nem notam que o belo defensor público esta olhando para elas com gostos de namorador. Tudo no vagão parece fazer parte de um Maravilhoso Mundo Novo. João Barbeiro desce delicadamente os degraus do vagão e se mistura a multidão. Olha para os lados e abrindo espaço entre gente que gritava e passageiros que entram e saem se dirige ao W.O. uma longa vontade de mixar toma conta de João Barbeiro. Entra na privada e recebe os primeiros odores dos reservados estações. Cheiro de merda misturada com mijos de cervejas e pingas quase faz com ele tenha uma vertigem.

Lê as frases comuns em toda privada. Uma lhe chama atenção:”Esta privada é diferente, ao invés da gente cagar nela ela que caga na gente”. Cuidou-se de não dar descargas. Uma dor de barriga quase o obriga a sentar-se neste local poeticamente sujo e fedorento. Sai devagar mais não consegue evitar pisar numa merda amarelada atrás da porta que ele fechava. Deixando a marca da sola de seu brilhante sapato de couro alemão, disfarça ao ver o solado ficar gravado no chão de cimento sob a marca fedorenta da merca pisada.

Uma vontade e tomar alguma coisa fazem com ele se dirija ao pequeno barzinho da Estação de Caju de Campos. Doces refrescos feitos em casa e um bule de café lhe enchem o desejo no olhar. Café pilado a mão e Campos eram famosos em todo o Brasil. Além das gostosas goiabadas cascão e os suspiros tenha ainda os doces de leite e caldas de todo tipo. Distraído, se viu alguns minutos lendo as manchetes esportivas do “Correio de Campos”, "Monitor" e de “A Cidade”. Sabia que o Rio Branco tinha sido campeão campista e que o Americano e o Goitacás tinham ficado para trás. Gostava de saber das novidades políticas e culturais. Leu alguns trechos de Hervê Salgado, as poesias do

E o editorial de Waldemar. Olhou crônicas de Prata Tavares e buscou alguma coisa de Godofredo Pinto a quem sempre que podia fazia a cabeça. Olhou a planície onde outrora habitava os temíveis e belos Índios Goytacazes e pensou como seria melhor viver naqueles tempos.

Capitulo XI

Em Macaé e Cabo Frio os Tamoios, em Carapebus e Conceição de Macabu os Urutus. Talvez eles tivessem uma vida mais tranqüila com suas caças e pescas. João Barbeiro divagava solenemente enquanto tomava o café na Estação do Caju. Uma serene que se fazia ouvir no teto da plataforma avisa que poucos minutos e o Expresso vai partir com destino ao Espírito Santo...

João Barbeiro sai andando do barzinho e vai abrindo caminho por entre a multidão que grita, esbraveja palavras de ordens e empunham faixas e cartazes. Mulheres histéricas aproveitam a ocasião para seus gritinhos e desmaios. Homens casados se assumem e desmunhecam em plena Estação sob os olhares pasmados de passageiros de outros vagões que não sabem de nada. Alguns acham até que deve ser uma euforia por algum titulo de futebol ou coisa que o valha. Homens que limpam as ruas levantam seus instrumentos de trabalho, Gadanhos, (ancinhos para os maranhenses) pás, foices e martelos são erguidos aos berros de “Queremos João , ele é dos nossos”...

Até os jurados que estava no Vagão para testemunhar a Longa Mentira Macaé-Campos tiveram dificuldades para tirar as centenas de pessoas que permaneciam em transe e êxtase. Tapinhas no rosto de um, copo de água fria em outro e eles foram sendo chamados para assinar o livro onde se diziam participante desta LONGA MENTIRA e que seus nomes seriam inseridos nos anais dos legislativos de todas as cidades e lugarejo onde se desenrolou a grande e longa mentira. O Juiz faz questão de opor sua assinatura e carimbar o mesmo fazendo os defensores públicos e os promotores de justiça. Alguns que vieram do vagão de 2a e que não sabiam assinar deixaram o dedão direito. `Para isso foi pedido emprestado do juiz sua almofada de tinta preta.

O companheiro do Guarda-freio pega um pequeno bonde que passa em frente à estação do Caju. Tinha deixado passar a barulhenta gritaria porque o transito tinha sido interrompido na altura da Rua Alberto Torres. Passeatas exigindo cidadania e troféus ao homem que tinha realizado o grande feito da Longa Mentira, faziam ficar perigoso qualquer veiculo. Até as carroças puxadas a burro e cavalos estavam paradas na altura da travessia da linha que dava acesso ao bairro da Leopoldina.

Sua alegre figura, toda de branco e com sapatos com couro de cobra, mexia com as cabeças femininas. As mulheres adoram esta extravagante presença masculina. Embora estejam dominadas pela febre que contaminava a cidade na presença do homem que tinha realizado do grande feito da Longa Mentira, elas ainda tinham tempo para olhar e piscar um olho em direção ao “fantasiado malandro” que ia sentado no reboque do Bonde com destino ao centro da cidade. Até o Motorneiro exibia uma faixa ao ombro na contaminada onda de loucura geral que João Barbeiro tinha conseguido.

Hotel Gaspar. Centro de Campos e o homem de branco e sapatos de couro de cobra pede um quarto. O jovem malandro olha com chateação alguns pingos de chupes de laranja que algumas crianças estabanadas tinham respingados em sua calça de puro linho branco.

Em Macaé a notícia chega a galope, “como se diziam” no interior da Bahia os Barbaréus e os Capiaus daqui. “Gritos de João é nosso” se parecem com a euforia que tomou conta dos Campistas. Os deputados federais Edilberto Ribeiro de Castro e Alair Ferreira, respectivamente de Macaé e de Campos exigiam a cidadania para seus redutos eleitorais. Zezé Barbosa ameaça distribuir Melado para o povo e Elias Agostinho Itakyra.

Neste samba do crioulo doido, na mistura de Melado com cachaça tudo parece ir as loucuras do povo que moram em Campos e em Macaé.

Faixas são erguidas com apoio da imprensa e de associações em geral. O REBATE e a GAZETA DE MACAÉ cobram providencia urgente do prefeito e da câmara. Se João Barbeiro não era macaense mesmo e se Campos ou São João da Barra provarem que ele é de lá, que se faça logo um titulo de cidadania porque não era possível que o homem que tinha feito tamanha obra mentirosa e longa. Latif Mussi Rocha e Jorge Costa editoraram seus semanários, GAZETA DE MACAÉ e O REBATE e contestam ao Hervê Salgado e Waldemar de Campos, respectivamente de A NOTICIA e do CORREIO DE CAMPOS. Historiadores das duas cidades, Godofredo e Tonito abrem espaços e buscam entender, em nível da historicidade dos tempos, a presença verdadeira e real deste homem.

Aos gritos de “Queremos João Barbeiro” e “Viva a Longa Mentira”, as mulheres dos clubes de serviços e de igrejas comunitárias berravam. Até o secamento de suas gargantas o nome de João Barbeiro.

A crise eufórica mistura ficção com realidade. Lideres políticos se esgoelam e podem ao povo que vá para a rua defender a cidadania do Homem que esta no pico das aspirações. Zezé Barbosa, dono de uma fabrica de melado de nome Fios de Ouro, abre o baú de suas miserabilidades e distribui melado para todos os participantes das manifestações. Em Macaé Elias Agostinho não deixa por menos. Distribui o produto de sua fabrica em Itakyra. A cachaça Itakyra é distribuída aos que gritam nas ruas a querência da cidadania para sua Comarca.

Nesta mistura de cachaça macaense com melado campista os habitantes, como se tivesse voltando às origens Tamoio-Goitacás. urram e dançam na busca de um espaço maior ao seu lado territorial para o nascimento do João Barbeiro. Haviam alguns deistas que juravam ter tido miragem onde uma Estrela Guia o tinha anunciado. Esta, vindo do Ocidente, escreveu num lindo Arco-Iris que havia cortado os céus de Carapebus e Capelinha, que ele tinha vinda como o Prometido dos Deuses.

Fazendeiros se desmunhecavam e se travestiam de mulheres num bloco que saia com mais de 700 figurantes do Clube da Praça Veríssimo de Mello. Todos e todos vestidos de Azul e Branco entoavam hinos de louvor ao homem que tinha conseguido realizar a Longa Mentira Macaé-Campos.

A turma do carteado que jogavam Campistas, Bacará, Pontinho e pocker, aos gritos, jogam os baralhos pelas janelas do casarão da Presidente Sodré e caem na gandaia que já toma conta do Café Belas Artes em Macaé e do Bar Francesa, na Praça São Salvador em Campos. Mulheres rompem à tradição campista e se postam na Rua do Homem em Pé e as de Macaé entram triunfante no Bar Imperatriz onde nunca mulher freqüentava.

Era um verdadeiro ”avesso do avesso” ou para Euzébio Mello, uma realidade do filme “Teorema”. Prostitutas abraçadas as mulheres da TFP festejavam alegremente e se uniam as Rotarianas e Leoninas que levantavam suas bandeiras saudando o grande João Barbeiro e anunciando a “Grande Mentira Macaé/Campos. Ricardo Meirelis, ainda menino, passa em frente ao Palácio dos Urubus e recebe a iluminação que o consagraria.

Um velho farmacêutico conhecido como “unha de vaca” porque não abria mãe nem para jogar peteca, distribuía água Prata e remédios aos pobres dos morros de Macaé que desceu em massa e seus moradores alegres pulavam junto à burguesia contaminada pela euforia. Uma longa fila se formava ao redor da Praça Veríssimo de Mello e ia se acabar quase nas escadarias de Imbetiba. Todos queriam Água prata de graça;

Um pároco, defensor da Família e da Propriedade, alardeava em sua paróquia do perigo das virgens participarem de eventos sobre a Longa Mentira porque, segundo ele havia perigo de drogas. Alertava do perigo de uma erva, segundo ele, maldita que era usada no Rio de Janeiro. Esta droga alertava o Padre com o apoio de pastores de outras religiões, os marginais “tragavam e iam às fechaduras das casas e assopravam para dentro. As pessoas das casas ficavam desacordadas e eles entravam e faziam tudo”.

Com o apoio das associações que prestavam serviços sociais e que no fundo eram agentes dos órgãos de segurança internacional, foram enviados ofícios aos governos estadual e federal para que criasse o feriado nacional em memória da Longa Mentira Macaé - Campos. Nada de primeiro de Abril, não, diziam nos ofícios. Este dia é das crianças e não se pode misturar mentira senão fica parecendo mentira mesmo. Queria um dia especial.

Alguém pensou em procurar o ex-prefeito Nogueira Itagiba que estava numa Hípica no Rio. Ele já tinha história como ex-prefeito de Macaé e, comentavam a boca pequena, que foram seus amigos que participaram da invasão e quebra do O REBATE nos anos 30.

Movimento “Gay-Campos com João Barbeiro” e dos de Macaé “Serrano voltará e viverá nos anos 2004” estendem faixas em ruas e pedem apoio de agremiações Gays da Bahia que prometem envio de representantes para engrossar as manifestações.

Campistas que moravam em Macaé, como o pai do autor estava preocupado com atentados ou agressões vinda de algum fanático. Corriam a” boca larga” que dois bêbados tinham se engavetado na ponte da Barra do Rio Macaé discutindo sobre onde tinha nascido João Barbeiro. Um cego que vinha em sentido contrário foi jogado dentro do Canal Macaé-Campos por que estava “tirando onda de maluco” gritando que João Barbeiro era de São João da Barra.

Otaviano Canella Manduca do Saps e Zezinho Crespo do Samdu e outros Campistas voltam as suas terras para prestigiarem o carnaval que se pretende fazer quando da descida do João Barbeiro na cidade.

Ainda se refazendo do gosto saboroso do café que tinha tomado na Estação, João Barbeiro consegue sair do meio da louca multidão e procura um ponto onde pudesse entrar num transporte e ir até a Rua dos Bondes visitar o casal de velho que o havia criado. Olhava feliz as árvores que as ruas ostentam e procura um gramado ou alguma poça de água para lavar seus sapatos. O cheiro e merca estão terríveis e agradece aos deuses não ter cagado no banheiro da Estação de Campos.

Se ele não visse aquela frase talvez sentasse sua bunda na tabua. Ai ele estaria, não só com cheiro de titica no sapato como também na bunda. Olha para um pequeno bosque e pensa ter água para lavar o sapato. Não queria entrar no Bonde do Caju-Centro cheirando a merda. Debalde. Não era água.

Era um fundo de garrafa de vinho tinto que brilhava parecido com água. Procurou uma graminha para esfregar o sapado. A catinga estava de mais. Pensou: “Este filho da puta que cagou atrás da porta da privada da Estação não deve ter mãe. Vai cagar assim, na puta que o pariu”. Enquanto terminava sua praga olhou e viu num canto de muro um local bom para limpar a merda. Parecia muro de uma casa com portão alto e, de longe lhe parecia um grande gramado.

Gente passando ao seu lado, gritando palavras de ordem e empunhando bandeiras quase não deixa João Barbeiro a vontade para limpar os sapatos. Deixa um grande bloco vindo do Parque Tamandaré cheio de mulheres bonitas que gritam sem parar: “Hei, hei, hei... João é nosso rei”. O bloco passa e João Barbeiro se dirige ao cantinho de muro para limpar, na grama, seu sapato catinguento de merda.

Finalmente, pensa. Encosta-se-se ao muro e, com cuidado para não to lar a mão na merda que ainda escorria, ele tira o sapato. Ai nota que os dois pés estão cagados. Puta que merda, esbragueja. Só faltava essa. Cuidando para não melar a mão, ele tira o sapato do pé direito.

Quando já vai se sentar na grama para tirar o pé esquerdo, um grande latido sem faz ouvido. Um cão está ao seu lado rosnando. Porra, pensa é não fala. E agora? To cagado e fudido na mão deste cachorro safado. Gente que passa olha desconfiada. Pensam: Será que é um ladrão? João Barbeiro não sabe se corre do cachorro ou se limpa da merda. Nesta altura já está com a mão toda cagada de merda porque tinha segurado os dois pés de sapato com medo deter que correr.

As crianças que estão indo para a Estação esperar e gritar: ”queremos João”, olham desconfiados aquele homem sem sapatos e acuado num canto de muro. Eles gritam: Pega, o homem está querendo pular o muro para roubar. As mulheres fazem coro.

O cachorro fica parado a sua frente rosnando, Pensa: Se correr o bicho me pega e seu ficar vão pensar que só ladrão. Os sapatos fediam mais que a latrina da Estação...

João está mais que acuado. As pessoas que iam para Estação em busca de poder ver e admirar o homem que tinha pregado a longa Mentira Macaé-Campos estão enlouquecidas e berram: Chamem a policia. Ele esta com os sapatos na mão prontos para pular o muro.

Deve ser ladrão do Rio porque a cara dele é de carioca. Um fio de luz tênue tinha acabado de entrar no último raio de sol. João não sabe o que fazer. Resmunga para dentro si mesmo: “To cagado e mal pago”.

E, olhando para os lados vê que as pessoas começam a aumentar e teme a chegada da policia. Um menino mais esperto lhe chega perto e grita para a pequena multidão: “Gente, ele ta todo cagado”. Deve estar se cagando com medo da policia. Vamos cair de pau em cima deste filho da puta ladrão e cagão, berra um senhor de óculos com uma bisnaga enfiada em baixo do sovaco.

As mulheres começam a ficar com pena do João. Um casal acha que deve deixar ele sair da buraca do muro. O cão, não se sabe se por causa do cheiro da merda, parou de rosnar mais estava na espreita de olho pregado em João. A mulher que tinha esboçado um gesto de nobreza volta atrás e diz. Vocês têm razão. Se este filho da puta cagão tivesse entrado na casa devia fazer um estrago.

Vai ver que é estrupador e traficante. Pela cara dele e pelo bigode raspadinho este vagabundo deve ser algum foragido da justiça, sentenciou um homem que portava uma maleta negra e tinha a boca, semi-aberta pelo uso de uma dentadura comprada no marchante de São Paulo que vinha a região de mês em mês.

João estava sem saber o que fazer. Ia todo feliz visitar o casal de velho. Maldita hora em que deu vontade de mijar naquela privada fedida da estação. Pior, pensava enquanto coçava o saco e olhando a quantidade de gente que ai aumentando, que eu não sei nem como sair daqui com toda e esta gente ai me xingando.

Acuado e todo cheirando a merda, com os sapatos as mãos João escuta as vozes que dizem que a policia está vindo. O bonde para quase a sua frente e os poucos passageiros ficam olhando e tomando conhecimento do acuamento de um perigoso ladrão que deve ter vindo do Rio de Janeiro no Expresso que tinha seguido para Mimoso.

Ainda se podem ouvir as manifestações populares que berram alucinadas que querendo participar da febre coletiva que tomou conta do povo. “È big, é big, big é big, Joao... João ...se escuta em toda a cidade. Cornetas são usadas para a algazarra e gramofones ligados e carregados pelas ruas e vielas. Comitivas de pecuarista de São Fidelis, Morro do Coco, Santo Antonio de Pádua, Porciuncula. Miracema, Italva, Itaperuna e Santo Antonio de Pádua chegam a toda hora. Muitos trazem mantimentos para evitarem faltas porque foram avisados que pode faltar devido ao fluxo de gente que se desloca para a cidade.

Enquanto João Barbeiro se contorce de um lado para outro tentando evitar um bote do cachorro que rosna a cada meximento de seu corpo, algum dos que o acusa já tinha ido e voltado da Estação do Caju e comunicado que o Chefe da Estação já tinha ligado para o Delegado que já estava a caminho com um forte aparato para prender o homem agachado a um muro próximo, O chefe aproveitou e acusou o João de ter sido o filho da puta que lhe deu um pontapé na bunda durante a euforia da chegada do herói Macaé-Campos. Sua bunda virgem ({de pontapé} ia ser vingada...).

Capitulo XIII

O telefone tocado a manivela é atendido por um sonolento X-9 que anota tudo e repassa para um detetive alto, braços músculos, peito bem gordo e que aparenta uma psicopatia visível em seu olhar.

Bufa e deixa exalar um cheio de tarde mal curtido e dos cantos de sua boca fedorenta, duas bolas de babas amareladas escorrem abaixo de seu lábio inferior. Suas mãos ainda cheiram a ossos de uma galinha que havia a pouco comido. O detetive esfrega estas duas mãos, se sentindo o dono da lei. Vamos, grita para o motorista de Jipe que serve de viatura. Temos serviço para fazer. Um perigoso marginal, possivelmente vindo do Rio esta nas imediações da Estação. Positivo, resmunga o motorista que estava cedido a DP de seu órgão de origem.

Vamos logo que a gente aproveita e tenta olhar, mesmo de longe, o homem que toda a região esta reverenciando como herói. Quero conhecer o autor da Longa Mentira Macaé - Campos, finaliza sua fala o detetive Paranhos.

Uma rápida passada num posto de gasolina de um comerciante que ajuda a lei e eles partem. Algema, dois longos trabucos, corda e ainda um soco inglês caso este marginal tente algo.

O detetive tinha vindo de Caxias e Macaé. Ostentava um grande pé que lhe tinha valido o alcunha de “Pé de Chumbo”. Gostava de deitar os presos e pisar em cima te que o infeliz falasse o que tinha feito e o que não tinham Alguns presos, do Rio e de Nova Iguaçu já até tinham denunciado em juízo que “Pe de chumbo” gostava de “Queimar uma rola” nas noites frias das cadeias da Baixada.

Sua bunda grande o fazia, embora apertando muito a calça com o coldre, parecer mesmo um elegante travesti das noites da Cinelândia, em passeios nos arredores da Senador Dantas, Amarelinho e Ponto Azul na Lapa...

Transito da Alberto Torres intenso. Padres e pastores de varias igrejas estão indo para a estação em busca de ver e acompanhar o desfile, em carro aberto, até o centro com o Homem da Longa Mentira. Lá ele receberá as bênçãos e as orações para que tenha longa vida por uma ecumênica região de religiões da região.

O jipe da policia chega ao local. É ele...é ele... È ele, apontam umas 40 pessoas para um canto de muro, cercado por um pequeno gramadinho. Acocorado, já tendo passado as mãos a cabeça e tolado a cara de uma merda rala misturada ao suor do medo, João Barbeiro esta quase que pedindo para ser levado pela policia. Seus olhos ainda estão com o brilho da sabedoria que nasceu com ele. Não esboça nenhuma reação quando “Pé de Chumbo” coloca em seus delicados pulsos o grampo que identifica o fora-da lei. Algemado, cagado e inocente... Coisas de nosso poder judiciário.

“Puta que o pariu”, rosna o detetive, Este filho da puta ta todo cagado. Ate na beira dos olhos tem merca escorrendo. Na delegacia, fala olhando para o motorista que está tampando o nariz com uma mão e segura um trabuco na outra, está sem água até para nossas necessidades. Como vai ser para lavar este puto todo cagado?

Uma multidão já começa a querer gritar “lincha”... lincha... lincha... quando o jipe parte em alta velocidade para a delegacia de Campos.

Um escrivão simpático está sentado numa máquina de escrever de olho num radio rabo quente que da as ultimas noticias sobre o Homem que tinha pregado a Longa Mentira Macaé – Campos.

“Uma rádio fala, cabotinamente, aos berros: Radio Cultura de Campos, falando para o mundo”. O locutor argumenta, dizendo-se ao vivo, e que está em cadeia com mais de 500 emissoras espalhadas pelo mundo. Que o João Barbeiro iria conceder uma “coletiva” as redes de comunicação que estavam chegando à cidade para cobertura.

A dificuldade em falar com o Homem devia ser que, segundo um comentarista da Record de São Paulo, ele tinha sido levado, escondido dentro de toldo amarelo para despistar a imprensa. Afirmava o locutor paulista que devia ser os repórteres da BBC de Londres ou da UPI.

A corria outra versão de que o pregador da Longa Mentira Macaé – Campos talvez estivesse descido em Ururaí. Mais se assim o fizesse teria perdido o seu feito porque a Mentira teria que ser até Campos. Hipótese que era confirmada pela Radio Clube de Macaé, das organizações Dantas.

Outra radio de freqüência modulada e. também de rabo quente, estava no corredor da delegacia onde um amontoado humano, que eram chamados de “acautelados ao Estado”, escutam atentos as noticias da Longa Mentira. Numa das celas, bem aconchegado numa rede de pano azul, um preso se balança alegre e bem nutrido. È o “xerife” da cadeia. Sempre de cara amarrada para parecer bravo ele assumiu esta posição depois de ter sido “moça” numa cadeia de São Gonçalo. Virou “ex” e, de cara de machão acompanha atento as noticias da grande e longa mentira.

João Barbeiro está ainda cheirando a merda quando o Delegado senta-se a sua distancia e pergunta se ele tem advogado. Já estava pensando eu oferecer um seu sobrinho que atendia a “porta de cadeia” e deixava sempre um troco que, somados ao que os bicheiros e prostitutas da Rua do Vieira mandava, dava para eles manter uma amante em sua ida semanal para sua cidade natal. João Barbeiro não sabia nem de que estava sendo acusado.

Não entendi do que seria penado e disse que não precisava de advogado não. Queria era sair dali de banho tomado e poder ver o casalzinho de velhos que estava esperando ele na Rua dos Bondes.

Desacato à autoridade. Trafico de drogas, tentativa de assalto com possibilidade de latrocínio, porte de armas, abuso de poder econômico, atentado violento ao pudor, vadiagem eram alguns dos enquadramentos que o delegado ia dizendo e o escrivão ia numerando numa folha de papel com o emblema da Republica do Brasil.

Desfilava os artigos e ia qualificando. Desacato era por ter sido acusado de dar um ponta a pé na bunda do chefe de estação e se defender quando o “Pé de chumbo” lhe pisou na cara. Trafico porque, foram encontrados em seus bolsos alguns restos de um fumo que parecia, grosso modo, erva do diabo.

O restante do enquadramento nos artigos da lei foram todos explicados e até a condição de estar todo cagado o delegado colocou como sendo ele cagando de bunda de fora na frente de populares na Estação, numa visível tentativa de poluição de cheiro e atentado ao pudor expondo a bunda aos olhares públicos.

Antes de ser recolhido a cela e aguarda um juiz que só vinha de sete em sete dias a comarca. João Barbeiro ainda é obrigado a passar num estreito “Corredor Polonês” recebendo tapas e pontapés de mais de 50 homens aos gritos de “porco, sai daí com esta catinga”. Vai tomar banho. E, outro mais agressivo e violento o mandava tomar em ligares terrivelmente feio e não sei aonde mais...

Recolhido a uma sela João Barbeiro vai aguardar a presença e um Juiz para que seu sofrimento que, se inicia, tenha prosseguimento. Encosta os ouvidos nas grades para uma respiração mais amena e escuta como o demais preso às últimas noticia do Homem Herói que tinha pregado a mais Longa Mentira Macaé-Campos. Pensa nos velhos que o esperam na Rua dos Bondes. Devem estar beirando aos oitentas.

Sempre que ia vê-los tinha uma mesa posta de café moído no pilão do quintal, maracaxeta cosida e assada, milho assado na brasa, um bolo de aipim e outro de fubá. As frutas eles colhiam e punham numa cesta que ele depois levava para os amigos de barbearia em Macaé. Sem falar no descansar de uma rede de fabricação artesanal que eles trouxeram quando visitaram os pais no Pará. Rede feita à mão e com os nomes dos dois velhos escritos em realce. Alcides e Ana. Estes nomes ainda estavam vagando em sua memória quando é desperto por um jato de água fria em seu corpo Ainda estava fedendo e os presos lhe ensoparam as vestes e o corpo. Sentado ainda viu o sol nascendo, nos últimos cantar de um galo mutuca numa casa ao lado da delegacia...

Capitulo XIV

O amanhecer em Campos é um dos mais lindos de todo nosso Estado. A límpida água do imponente Rio Paraíba faz com que os raios do sol façam figuras geométricas em sua caminhada para o interior das cidadezinhas que ele corta. Alguns Robalos encantam jovens que pescam com pequenos caniços alguns espertos murionges e elegantes sardinhas. A passagem de habitante de Guarús para o centro da cidade se faz de uma beleza sem igual. Todos se cumprimentam, deixam e levam lembranças.

Lavadeiras, com suas trouxas de roupa passada a ferro de carvão, cruzam com padeiros e leiteiros em seus carrinhos de mão e grandes cestos. Bicicletas brilhantes pelo bom trato ficam, algumas paradas no meio da ponte e seus proprietários discutem trocas e boas vendas. Dezenas de gaiolas com celeiros, encapadas ou não, cantam o dia que brota e encantam seus provisórios donos. Papa-capim vindo de Santa Maria Madalena, Macuco e Cardoso Moreira mudam e dono e alguns com volta em dinheiro.

A sombra de grandes arvore e sob o manto sagrado de um sol avermelhado, Campos dos Índios Goitacás é palco de uma beleza natural que lhe orna o lindo dia que nasce...

O Expresso esta de volta aos trilhos da estrada de Ferro Leopoldina. Agora com outro nome. O Noturno deixa o Espírito Santo e se dirige aa Estação de Barão de Mauá. Outro Maquinista. Outro guarda-freio e outros passageiros. João Barbeiro que, ao sair escondidinho, ia visitar o casal Alcides e Ana na Rua dos Bondes e depois pegar este noturno e voltar ao seu trabalho de barbeiro está numa cela, sem lenço e sem documentos a espera de um juiz que irá apreciar as dezenas de delitos que lhe foram imputados, Tudo por causa de uma filha da puta de uma cagada de merda. Seus dedos e mãos ainda cheiram a titica seca.

Jogaram água mais nem um sabão de coco lhe deu para abafar o odor. Ao seu lado quatro jovens presos por ter roubado umas galinhas e alguns doces numa casa de um contraventor está também aguardando o juiz e o defensor.

Eles ainda têm mães e tias, que segundo é voz corrente nos cubículos, estão “correndo atrás” de testemunhas que dirão em juízo que são trabalhadores, estudam, tem endereço fixo e não são acusados de vadiagem nem de ter dado um pontapé no chefe da estação que, depois do expediente na Leopoldina era também pastor de uma congregação que ficava na fazenda do contraventor que era objeto da prisão dos meninos.

Alguns presos diziam que este contraventor tinha matado um jovem que namorava sua mulher bem mais nova que ele e que também era acusado em São João do Meriti de assalto a um carro pagador de uma empresa. Vindo morar em Campos “ele se deu bem”, resmungava um acautelado que tinha passagem por homicídio em Belfort Roxo e Magé, aqui ele se aconchegou na aba de um político e logo estava comendo e bebendo na mesa dos policiais e membros da justiça. E rosna com sua boca ainda sedenta de sono: Falam ate que depois deter sido agraciado como cidadão honorário ele passou até a ser cogitado para várias entidades sociais.

Café das 7 horas sendo distribuído e João Barbeiro escuta as ultimas notícias sobre a Longa Mentira Macaé – Campos. Os dois rádios, o do carcereiro que serve aos ouvidos dos presos em troca de algum troco e o da sala do escrivão dizem que o João Barbeiro, o herói da longa mentira devia ter se vendido ao capital internacional da mídia e deveria estar rumando para Londres ou América do Norte para, de lá, conceder a tão esperada coletiva que o locutor da Cultura insistia em gritar que estava “falando de Campos para o Mundo”.

Um longo e sonoro apito anuncia que o Expresso esta partindo de Campos em direção ao Espírito Santo. O jovem Maquinista sente-se aliviado da missão que tinha sido escolhido para cumprir pelo jovem meio aloirado Guarda –Freios. As reuniões deveram ser iniciadas em Macaé e Campos simultaneamente No Rio de Janeiro haveria uma mais ampla. A ferrovia tinha que dar o grande passo na luta por melhores condições de vida para as futuras gerações. Sua parte estava fazendo. Avisado ao “Malandro” que depois de ler tudo teria que queimar os textos e evitar que alguém vise o fogo. Muitos ferroviários estavam arriscando a vida e o emprego.

Em Macaé e Campos havia muito muro escrito com palavras de ordens e muito policial vinha bisbilhotando bairros e cidades em busca de pistas.

O Expresso aumenta sua velocidade. Reina uma grande alegria nas pessoas que participaram do vagão onde o João Barbeiro tinha ficado de Macaé até Campos. Os que voltavam para o vagão de 2a estavam com olhares mais alegre.

O brilho fazia brotar um belo uniforme em todas as pessoas. Olhavam a vasta campina que se espalhava ao longo da ferrovia e o sentimento era de profunda integração com o belo. As crianças esboçavam gestos carinhosos nos corpos dos adultos e estes faziam festa como se a viagem estivesse sendo motivo de uma nova visão do universo. Olhavam o azul do infinito com maestria beleza e apontavam os pássaros que voavam ou acompanhavam a velocidade do Expresso.

As roupas estendidas nas janelas e que às vezes cheirava a mijo de criança era bem aceita pelos passageiros de bancos laterais. Até mesmo a cantiga triste de um velho nordestino que tomava suas pingas num gargalo, estava com a presença aceita e compreendida. Muitos ainda ficavam olhando para dentro de si, embasbacados pela fala do João Barbeiro.

A saudade daquele homem simples que falava manso tinha dominado as cabeças de forma quase que hipnótica. Não havia mais vergonha se estar num vagão de 2a e sentado em cima de um pau duro. O pau de assentamento tinha uma carreira de varetas que deixavam o espaço de modo que não machucava as bundas. Não era igual às poltronas da 1a classe, com estofados esverdeado e liso. Mais agora parecia que todos estavam num paraíso enquanto o Expresso caminha em direção ao Espírito Santo.

No vagão de 1a, onde se iniciou a fala do João Barbeiro a alegria não é diferente. Os homens de sobretudo e capas sobre as roupas finas papeiam como se estivessem numa sala de visita. O preso está com as pernas em cima do colo do Juiz de Direito e o promotor publico que vai acusar no júri em Vitória, ria abertamente das algemas em seu punho. Os outros passageiros brincam de “purrinha” ou jogam o jogo da velha num papel que o cobrador trouxe do Restaurante. As mulheres coçam a cabeça uma das outros e o cafuné é aplicado ate na careca de um vendedor de dentaduras que segue com destino a Mimoso do Sul.

Capitulo XV

Canela de Pau avisa a sua avó que quer fazer exames para a Escola Ferroviária. Guarda freios assume definitivamente sua condição de militante e parte para a luta de classe. A cidade onde estes dois habitantes vivem tem a tranqüilidade que reina em qualquer dos milhares que existem em todo mundo, Vai e vem de meninos indo para escolas e idas e vindas de homens para o trabalho. Mulheres cuidando dos afazeres do lar e moças e rapazes se entreolhando na busca de um futuro namoro. A normalidade quase não se quebra. Vez ou outra um acontecimento, uma morte de alguém conhecido e tudo cai novamente na monotonia de qualquer cidadezinha de interior.

A avó de Canela de Pau é o que se pode chamar de beata. Não perde uma ladainha e nem as missas de domingo. È o conforto desta linda senhora pela perda de seu companheiro ainda jovem.

A mãe e irmã mais velha uns 15 anos de Guarda – freios é também religiosa. Não chega a ser igual à avó de Canela de Pau mais é muito apegada a estes sacramentos. Ambas querem incutir nas duas mentalidades humanas que elas dominam no afeto e no amor, que este é o melhor caminho para a vida em sociedade. Como a relação humana é cheia de reconhecimentos que nascem e crescem no afetivo esta doutrina está se enraizando nas duas cabeças com tendência a se fixar por toda a vida.

Guarda-freio já sente que não é assim que a banda toca. Olha a lua e não vê mais o são Jorge que lhe foi encucado desde menino. Com isso ele vai tornando real outras mentiras religiosas que acompanham sua existência desde menino.

Canela de Pau, embora não se dobre as determinações do social e da hierarquia que outros meninos, na docilidade ou não acomodação, aceitam, neste lado da religiosidade permanecia fechado. Também não era para menos. Sua avó o tinha criado desde o nascimento falando às coisas que trazia da Igreja Católica Apostólica Romana de onde era presidente de um Apostolado de Oração.

Aquele onde as senhoras, todas de negro, acompanham procissões com estandartes vermelhos e um grande coração que diziam ser o Coração de Jesus. Nas missas ela ficava num lugar de destaque e Canela de Pau, sempre ao seu lado, desde menininho, ia achando que tudo aquilo representava a única e absoluta verdade da existência, vida e morte.

As idas e vindas de Guarda – freios nos vagões de serviço de linha, nas viagens a outras localidades, muitas das vezes com pernoites, foi cimentando em sua consciência uma nova visão da existência, Até porque, o seu companheiro de idas e vindas montado nas escadarias ou sentado nos dormentes de vagões abertos, sempre lhe falava destas negativas que as pessoas incutem como sendo positivo.

Estas duas existências, tanto Canela como Guarda habitavam a mesma cidadezinha do norte do Estado do Rio. Depois que Canela entrou para a Escola Ferroviária do Senai e, sendo o Guarda - freios já funcionário da Estrada de Ferro Leopoldina passaram a ficar mais próximos um do outro.

O ano de 1953 estava abrindo novas perspectivas na vida de Canela de pau.

As luzes dos lampiões que os Guardas – freios usavam faziam parte de um mundo de informações e sinais que eram usados em toda a extensão da Estrada de Ferro. Eram movidos a querosene. De uma estação a outro tudo tinha que checado de minuto a minuto. Quando acontecia de alguma incidente ter sua ocorrência depois da saída dos trens, os guardas –freios tinham que, com urgência embarcarem num trenzinho tocado a mão, igual um remo de barco.

Eles iam catucando uma vara no chão e a força da esticada, de encontro ao solo, ia dando velocidade ao “carrinho de madeira”. Ele ia de encontro ao grande trem e avisava do perigo. O sol das tardes e das madrugadas estava sempre acompanhando estes homens da ferrovia. “As crianças que moravam na grande extensão da Estrada de Ferro pensavam que eles estavam brincando de rolimãs” grandes e pulavam saudando a perigosa brincadeira de gente grande.

Quando não era para avisar do perigo este lindo brinquedinho de gente grande estava ali para abrir caminho para o conhecido FL-2 que era um trem de carga que pedia e tinha que ter passagem direto até o final do trecho. Foguista eram obrigados, para não atrasar os trens que viriam a apanhar, os arcos de bambu esticados ao longo da ferrovia, a licença para trafegar. Tudo artesanalmente lindo e sem falhas.

Funcionário de uma firma de nome Soca iam sendo saudados nas passagens dos Foguistas e Guarda – freios.

Vida mesmo diferente para este menino de 13 anos. Novos amigos e um mundo totalmente diferente do que vivia. A Escola Ferroviária 8-1 Senai era uma das poucas existentes em todo o Brasil. Mantida totalmente pela Leopoldina, até então braço nacional da matriz de Londres. Os adolescentes ingressavam com 13 anos para 14 e saiam 3 anos depois com uma profissão definida. Os que quisessem tinha ingresso automático na Ferrovia. Era uma escola de formação de todos os níveis. Entravam às 7 horas junto com os ferroviários das Oficinas de Imbetiba.

Tinham que acorda às 6 horas, tomar café, levar seu lanche numa sacolinha e esperar o apito do “Buso” as seis e 30 minutos. Não podia chegar atrasado. As 15 para as 7 horas um aviso era dado em outro buso que era ouvido em toda a cidadezinha de Macaé.

Ai era pegar a bicicleta ou as próprias pernas e caminhar, uniformizado elegantemente dentro de caqui amarelo, ajeitar o bibico na cabeça e ir para a Escola.

No verão sempre se podia ver os lindos raios de sol que cortavam as água da Praia de Imbetiba nas idas e vindas da casa para a Escola e da Escola para casa. Os meninos do segundo e do terceiro ano já tinham crédito em todas as lojas e exibiam reluzentes bicicletas que a prestação do salário podia saldar. Olhares de soslaio para alguns velhos ferroviários que saudavam Canela de Pau alegre e cordialmente.

Na sua passagem para a escola observava atento e curioso os que, sentados em baixo da frondosa amendoeira papeavam e gesticulavam alegremente. Eram os que almoçavam nas oficinas e estavam sempre sentados. No balcão Canela de Pau ia e tomava alguns goles de água natural que o proprietário Nicomedes Aguiar gostava de afirmar ser água vindo direto da “Atalaia” um conhecido lugarejo de águas cristalinas.

O tempo vai passando e as histórias se cristalizando no mundo das existências humanas em todas as épocas e ocasiões.

Veio o segundo ano. No primeiro ano todos os 36 alunos que entraram no Senai com Canela de Pau, fazem rodízio em todas as profissões. Era uma maneira de aperfeiçoamento e ser observados pelos instrutores que iriam dar sua opinião sobre quem iria ser isso ou aquilo nos dois próximos anos. Observados pelos meninos dos mais velhos estes aprendizes iam se definindo na medida em que as semanas iam passando. Aulas e educação física, num meigo e alegre campinho das sete as oito, crédito aberto do bar de Cecílio e um banho coletivo em chuveiros de água gelada e forte eram os ingredientes dos inícios de manhas na escola do Senai.

Durante o primeiro ano era rodízio em todas as profissões. Caldeiraria, tendo como Instrutor Ruben Euzébio ou Joaquim Alves do Amaral Filho; Ferraria era com o simpático e alegre João Gordo, Carpintaria tinha o Waldyr Santos, Elétrica Mozart Leão, Tornearia seu Orlando e na Ajustagem os dois dos maiores seres humanos que Canela de Pau conheceu na sua vivencia na Escola do Senai. Wilson Santos e Antonio Garfante. Por eles e por seus dotes de simplicidade que a maioria dos aprendizes queria ser Ajustador e o Canela de Pau, que virou Pinguin no segundo ano, escolheu esta profissão a qual o acompanhou ate o fim de seus dias na Escola.

Definido o desejo e a vontade o segundo ano e o terceiro foram passando rápidos e de compassado conhecimento onde Canela de Pau, sob a supervisão de um compreensivo instrutor de nome Wilson Santos e Antonio “Garfante” aprendia a profissão de Ajustador Torneiro. A roupa azul e reluzente do inicio da chegada a Escola Ferroviária do Senai, já estava totalmente desbotada e com remendos naturais que eram os sinais de que estava sendo usada no “trabalho” orgulhosamente lavada em tanques nos quintais que ornavam a Macaé pura nos anos 50.

O destino ou o acaso estavam delineando alguma coisa para que ficasse imortalizada a presença de Guarda-freis e Canela de Pau. Sempre nos finais de ano, os alunos tinham direito as férias e, estas podiam ser usadas em viagens nos trens da Leopoldina com passagens grátis. Alguns iam ao Rio, outros a Campos ou Mimoso do Sul. Canela e um grupo foram passar as férias em Cachoeira do Itapemirim. Alegres estes meninos faziam o “grande vôo dos 14 anos”. Longe dos olhares de mães, avós, pais e irmãos mais velhos eles iam como passarinhos soltos de algum gaiolão humano, com destino a desconhecidas regiões e cidades.

O grupo de meninos de 14 a 15 anos, alunos do Senai 8-1, chegam à cidade capixaba. Todos nunca tinham viajado tão longe de suas casas. Agarrando-se, uns aos outros, estes meninos experimentam a ocasião e solidificam as amizades que foram forjadas nos dois primeiros anos de convivência na escola ferroviária. Jorge Jornaleiro, Wallace, Ivan Coruja Drumonnd, Bebeto Bacellar, Zé Milbs Pinguin e, se não me engano Zé Luiz Nervosinho faziam parte deste grupo que se hospedam num simples hotel e buscas conhecer a cidade.

Capitulo XVI

Na cadeia publica de Campos, João Barbeiro é chamado para “ir a juízo depor”. Estavam na cidade os representantes da lei que, de 15 em 15 dias compareciam para o “cumprimento da lei”. João é levado no jipe que é abastecido pela contravenção e se dirige ao local da audiência. Cabisbaixo como todo bandido ele senta no banco para ouvir em que está sendo enquadrado. A palidez de seu rosto amorenado cedeu lugar a alguns filetes de enrugamento nestes meses de prisão. Nem nota o olhar de espanto que paira no semblante do juiz e no do promotor. Entreolham-se e confirmam em vozes balbuciadas e ininteligível aos que lotam o plenário do fórum:

“È mesmo o filha da puta do cara que a gente estava ouvindo naquela viagem e que nos envolveu ao ponto de nos levar a desmoralização de desalgemar aquele preso e por as algemas eu seu pulso”, balbuciou o juiz. “É este safado mesmo”, finaliza o promotor ávido de fazer justiça e ainda tendo a sua retina o olhar punitivo dos que estavam no vagão onde João pregava a longa Mentira Macaé Campos.

O representando do Ministério Publico não podia esquecer o momento quando ele desalgemou o preso e recebeu as algemas em seu pulso. Vieram naquela ocasião algumas de suas passagens no cargo. Sentiu o peso de ter condenado um homem em Niterói que sabia inocente mais que tinha olhado para sua namorada ainda na faculdade.

Viu com clareza o dinheiro que recebeu para “amaciar” sua acusação a um grupo de traficantes e homicidas. Nos autos que ele fez vista grossa estava clara a participação de um seu primo que tempos depois tinha sido morto num confronto com policiais no Morro de Cavalão.

Estava a sua frente o homem que o tinha feito auto condenar-se naquele vagão de triste lembrança. E, estava ali a sua frente e a do Juiz que, boquiaberto e quase hipnotizado, o tinha feito passar por este vexame publico. O próprio Juiz tinha visto passar a sua frente, naquela ocasião, o filme de suas sentenças vendidas a políticos ladrões e se viu nu em suas venalidades. “Este homem tem que pagar por isso”, rosnou ao Promotor e ao jovem defensor, que viraram os rostos rapidinhos devido ao fedor do hálito que exalava da boca do magistrado...

João nem de longe reconheceu as figuras de seus julgadores. Sabia que estava na frente de um Juiz, de um membro do Ministério Público e da Defensoria. Acreditando em sua inocência João Barbeiro, cabisbaixo como todos que “sentam no banco dos réus”, olhava-se para dentro na esperança de voltar à rua e sorrir...

Folhas e mais folhas de papel foram lidas em graves acusações ao João que, vez ou outra nem sabia se era com ele. O chefe da estação quis tirar a calça para mostrar sua bunda branca afirmando que no pontapé tinha entrado um prego o que lhe deixou a marca. Alguns advogados e curiosos, ainda ensaiaram “mostra”. , mostra, mostra mais foi negado o pedido do Ministério Público. Valia ali a palavra da vitima...

O policial que fez a prisão de João Barbeiro levou um sapado velho com um prego, previamente colocado a mando do delegado. Nem o pedido da Defensoria pedindo ao Juiz que João Barbeiro experimentasse o sapado foi aceito pelo Juiz, ávido de “fazer cumprir a lei”...

Uma retardatária passeata de jovens estudantes, ainda esperançosos de que o herói da Longa Mentira ainda aparecesse pelas imediações do Fórum, erguiam uma grande faixa onde se lia: João Barbeiro é o Mota Coqueiro dos nossos dias. Queremos justiça com sua identidade. Ele é o nosso rei...

Catucado pelo policial João se levanta para ouvir os crimes a que esta sendo enquadrado. Desacato a Autoridade (enquadrado no pontapé do chefe da estação). Atentado Violento do Pudor (acusado pelos que o viram de calça na mão quando estava se limpando), Vadiagem (não portar doc.), suspeita de tráfico de drogas (acusação feita pelo homem da bíblia e por ser parecido com traficante. O juiz e o promotor eram da teoria lombrosiana, cara de bandido, bandido é) e tentativa de homicídio (porque quando o chefe da estação caiu foi de cara aos trilhos e, se supõe o trem andando ele estaria morto).

Com pedido de Rito Sumário e, sem que a defensoria Pública se manifestasse contra, o João Barbeiro foi condenado há 16 anos, quatro meses e 23 dias de prisão em regime fechado. Transferido para Ilha Grande no Rio de Janeiro.

Antes de deixar o recinto do Fórum ele ainda pode ver o olhar de alegria e contentamento que se esboçava no risinho frio do Juiz, do Promotor e do “Defensor”. A justiça tinha sido feita, dizia esta trilogia da lei, quando do almoço, horas depois na fazenda do “dono do jogo de carteado”... Neste almoço estava presente toda a cúpula que participou da farsa que condenou o pregador da Grande Mentira Macaé - Campos. Sorrisos, afagos e batidas leves na barriga do “benfeitor” das autoridades foram algumas das muitas confraternizações destes abomináveis seres humanos e donos da lei.

Sem entender nada e do motivo de sua condenação, João é levado sem nome nem documentos para o presídio. Antes, porém ainda deu para ler a faixa que pede fim das impunidades judiciais na mão dos estudantes que fala em Mota Coqueiro, o ultimo enforcado. Mesmo algemado ele lembrou passagens sobre este homem que tinha sido acusado de botar fogo numa família em Macabusinho. Enforcado na Praça da Luz ele jurou inocência e ”rogou” uma praga para a cidade não crescer em 100 anos. Fato é que só 110 anos depois de seu enforcamento, pensou e deu um leve sorriso de soslaio, é que o petróleo fez isto aqui virar metrópole... Olhava para dentro de si e via os anos 70 que viriam...

Reverenciado em livros, o João Barbeiro continua herói nas cidades de Macaé e Campos pela Longa Mentira que prometeu pregar no Expresso Estrada de ferro Leopoldina. A maioria dos historiadores afirma que ele esta morando em alguma cidadezinha da Florida, cercada de mulheres com o dinheiro recebido com a Longa Mentira Macaé - Campos...

Phidias Barbosa, historiador, cineasta, escritor, autor do livro de Quissamã a Hollywood e, colaborador do O REBATE on-line no futuro ano 2006, esta na Flórida e busca o encontro com este símbolo imaginário/real que caracterizou com êxito, A Grande Mentira Macaé - Campos.

No silencio e, apenas tento como companhia alguns presos famosos e, à noite o balancear das ondas que chegam ao alto rochedo da Ilha Grande, João Barbeiro quer entender o que significa justiça e judiciário. Sabia ter sido vitima de uma injustiça e queria separa estas duas palavras: Justiça e Judiciário. Não podia uma verdade absoluta as sentenças do judiciário quando não fazia justiça e não podia ser confundida Justiça com membros do poder judiciário que faziam cumprir a lei e a justiça. Isto tudo formigava a cabeça do João Barbeiro que queria com isso exterminar certas mentiras proferidas pelo Judiciário em nome da justiça.

Longas conversas com velhos condenados e o relato de seus delitos. Escuta com curiosidade a fala de Cara de Cavalo que se assume nos artigos que foi condenado; sabe o quanto esteve envolvida o lado podre das policias do Estado do Rio, na prisão, fugas e morte de Mariel mariscot; ri com as loucas narrações feitas por Flavio Moreira, O Flavinho de Macaé que sempre este cercado de velhos cadeeiros do Borel e Mangueira: se entusiasma com as historias de C.O e Lucio Flavio Vilar Rios e seus envolvimento com a lei e a contravenção... Enfim, uma Universidade de Longas Verdades lhe são passadas por verdadeiros personagens da vida no presídio. Quando lhe perguntam em que artigo ele foi mandado para lá, João não sabe explicar e provoca risos longos até de “Madame satã” que, num canto de pedra observa os pulos inocentes de um enxame de sardinhas que dançam alegres e livres no revolto mar da Ilha Grande. A hora que estava em companhia deste símbolo da marginalidade assumida, ele soltava gargalhada quando Satã lhe contava às pernadas que dava nas noites alegres da Lapa e da Praça Mauá. Falava no Gordo do prédio da Radio Nacional e ia pondo João a par das malandragens puras do Rio Antigo. Quando a noite ia, mansamente caindo na Ilha alguns jovens, presos por defender o direito sagrado do povo, sentavam ao lado do João. Muitos ainda tinham o brilho da inocência que, batendo no olhar dele de igual inocência, fazia com que o silencio falasse e esse desse os informes de que o mundo após a chegada do João aquele local tão distante do mundo. Com esses jovens ele aprendeu mais sobre as desigualdades sociais e teve seu primeiro contato com a beleza de um mundo igualitário e justo.

As madrugadas, quando o sono não vinha ele se via sempre a olhar o mar. Algum presidiário sempre estava a contemplar as ondas. Falavam dos companheiros que ousaram sair dali a nado e pereceram vitima dos peixes ou cansaço físico. Mariel Mariscot, além de contar suas atividades no submundo ainda lhe falava das noites nos dancings que fervilhavam o Rio. Avenida e Brasil, na Rio Branco e Novo México na Praça Mauá ele conhecia sem nunca ter ido ao Rio. As dançarinas e os proxenetas e rufiões das encantadas e puras noites cariocas passaram a ser familiar a este homem rude nascido nas poeiras das ruas do interior do Rio de Janeiro.

Buscando entende o que representa a lei no sistema em que vivemos o João Barbeiro pede para estudar direito. Seu olhar que saltam pureza e inocência comove o Juiz da Vara de Execuções Penais, Elieser Rosa que consegue documentá-lo e o transfere para um lugar onde pudesse estudar. . Com pouco tempo, antes mesmo de terminar sua pena, cola grau e, depois de um período legal, faz concurso para Juiz.

Capitulo XVII

Em Macahé o Tribunal de Justiça abre processo contra a Magistratura envolvida em desvio de dinheiro e associação ao tráfico de drogas. Juizes são afastados, a sociedade inteira, principalmente a Câmara dos vereadores, "useiro e vezeiro" em condecorações, chora nos cantos por ter sido envolvida e concedido Diplomas de Méritos aos acusados. Quem antes abrigada os envolvidos, agora abomina sua presença. “Tiram o deles da reta”, como dizia o meu amigo de infância Cláudio Moacyr. È a lei do cão... Um cão danado, todos a ele, sentenciava minha avó em sua sabedoria herdada dos sertões de Carapebus...

Longo é o processo, como tudo no judiciário que se vê emperrado numa lei arcaica. Como no velho chavão de que a “justiça tarda mais não falha” a coisa vai sendo empurrada como sempre. Neste caso foi até bom a demora judiciária.

João Barbeiro, com um trabalho lindo a frente de quatro comarcas e uma da capital é nomeado Desembargador. A vida para ele se torna mais cômoda. Sempre julgou a favor dos humildes e via sua nomeação ao alto cargo como um coroamento ao seu trabalho.

Acorda mais cedo nesta madrugada. Ele tinha que ir para o tribunal de Justiça para presidir um julgamento importante no judiciário. O presidente estava de férias e ele tinha que decidir. Tribunal cheio, advogados, juizes de todas as comarcas presente, autoridades civis, velhos delegados de policias e muita gente simples que, sempre que o Doutor Silvério Pacheco Dantas, tinha alguma causa a ser julgada, os pobres iam para ver seu rosto e seu olhar de doçura. Era sempre assim em todos os lugares e não seria diferente no TJ.

Entra na sala o Réu-Juiz. Cabisbaixo, olhar fixo no chão, como todo bandido vagabundo de sua laia. A gravata, símbolo de sua sacana vida, ainda está com ele. Ela simboliza o imbuste que encobre tanta bandalheira no Brasil. Dizem até um futuro presidente do Brasil, saído das “classes trabalhadoras”, ia usar gravata e esquecer o macacão de torneiro-mecanico e se venderia ao capital internacional que oprime o povo que o elegeria presidente. Mais isso é coisa para outro livro...

O Juiz réu senta no banco onde tanta gente condenou. Um longo silencio se faz sentir no recinto. O Desembargador Dantas se virá para o réu é diz em voz suave e firme: Olhe para mim e veja se reconhece no meu olhar algum delito em minha vida. Olhe e diga: se você encontrar algum delito eu peço sua absolvição. Do contrario você vai terminar seus dias mofando onde devo mofar todos que desrespeitam o direito.

Olhar do canalha se torna mais frio que a frieza de sua existência. Ajoelha-se, covardemente e chora. Trás para si todo rosário de crimes que cometeu e puxa os seus cúmplices que somados a outros marginais podemos contar nos dedos o Promotor que julgou João Barbeiro, o Delegado e toda a equipe de policiais e advogados daquela podre comarca...

O mesmo João Barbeiro que o tinha feito sentir-se pequeno no vagão da Longa Mentira Macaé-Campos o fez falar os crimes que ocultava nos autos para espanto de todo o conjunto do Tribunal e de seus famosos advogados pagos a peso de ouro com o dinheiro do crime organizado.

Condenado a perda da função e a mais de 20 anos este canalha é o exemplo vivo de como se comporta certos juizes, certas autoridades e muitos engravatados num regime capitalista e cruel...

Capitulo XVIII

Com 14 anos e cursando o segundo ano na Escola Ferroviária do Senai da Estrada de Ferro Leopoldina, Canela de Pau chega a Cachoeira do Itapemirin no Espírito Santo. È uma viagem que todos os alunos do segundo e terceiro anos fazem de graça como presente da ferrovia aos seus estudos. Viajam no Noturno que é para chegar bem cedinho.

Guarda-freios e Canela de Pau iriam se encontrar numa destas esquinas da vida. O menino de 14 anos e o rapaz de 25 se cumprimentam na Estação de Cachoeira. Ele já o tinha visto nas idas e vindas à oficina Geral e ele também o tinha visto nas tardes que a sombra da Amendoeira do Bar Mocambo, em Imbetiba. Elas são testemunhas das longas conversas antes de cada dia de almoço e saídas da ferrovia.

Missão cumprida de Guarda-freio num encontro com outro Guarda-freio de nome Tavares, motivou curiosos entendimentos entre estes três seres humanos. Dois macaenses e um capixaba. Um menino e dois Combatentes. Dois Tavares e um Gama. O menino se apresenta e logo é chamado de Gama e os dois Tavares idem. Waldyr é o Tavares de Macaé. Começa ai um encontro fraterno que irá se prolongar nas três existências...

A pequena cidade onde estes personagens moram sofre uma grande transformação sócia econômica e cultural mais a semente que foi plantada no rápido encontro haveria de crescer e fazer vigorar o fruto em forma de meios mais objetivos na busca de uma sociedade mais justa, fraterna e humana. O menino Gama cresceu, fez escola nas lideranças políticas e estudantis. Virou Pinguin até os 18 anos, e até os 30 ainda acreditava na eternidade da existência e nos ritos que lhe foram passados pelos familiares.

O Tavares Waldyr se fortalecia nas lutas políticas em outras trincheiras. Se o menino Gama ainda acreditava nas vias parlamentares para transformar a sociedade o Tavares já estava muito distante desta mentira “democrática”.

O menino Gama e o Tavares Waldyr se reencontram nos anos de chumbo. Fervilha no Brasil a luta contra a ditadura militar e os dois voltam conversar. Movimento contracultura de um lado e luta armada de outro. Se o menino Gama tinha chutado a balde do social e caído de cabeça no movimento Hippie o Tavares estava vendo a solução na luta armada.

Dizem que os extremos de tocam e ai deve residir alguma coisa de verdadeiro. O menino Gama já não esta acreditando no eterno e com algumas conversas mais amplas seus horizontes se tocam. Anos se passam e eles continuam na mesma cidadezinha de sol e mar esverdeado que banha a bela e turística Praia de imbetiba...

Acreditando na transformação pelo voto, o menino Gama, já adulto se entusiasma pelo PT. Tavares avisa em todo momento que se esbarram nalguma esquina da vida: “não é por ai”... E não era mesmo...

Menino Gama fica 27 anos enganados e a paciência revolucionária de Waldyr o faz esperar. Não foram em vão à negativa experiência do Gama nem a paciência do Waldyr.

Aos quase oitenta anos o guarda-freio Tavares e aos quase 70 Canela de Pau Gama estão no mesmo barco que navega em busca de uma sociedade mais justa. Agora ambos não acreditam na transformação da sociedade pela via parlamentar e estão ombro a ombro na luta pela igualdade dos povos. Antes tarde que nunca. As origens na ferrovia uniram estes dois seres.

A Praia de Imbetiba, na cidadezinha de Macaé não é mais a mesma. Suas ondas bravias não banham mais as pedras que circundavam o Velho Hotel Balneário de Imbetiba. O sol, nas tardes frescas, não consegue mais fazer, nas ondas que sumiram os fios cor de ouro que tanto alegrava o olhar das crianças. Sumiram as pedras brancas e as estrelas do mar...

Os passos de trabalhadores que vão diariamente ao local onde funcionava a Estação da Leopoldina, habitam outros corpos humanos. As bicicletas cederam lugar a luxuosos micros ônibus e carros importados. Embora uma grande maioria ainda ostente o rosto cansado de noites embarcados no alto mar de Macaé, existe uma diferença latente. Os dedos tocam maquinas leves e as mãos não cedem lugar aos calos das batidas dos malhos, do corte de chapas de aço e os olhos não aparecem vermelhos pelas faíscas das serras e pingos de fogo que saiam das caldeiras. È uma nova Macaé que brota. A rua é a mesma, embora ornadas por prédios modernos. O Hotel se transformou, as areias se amarelaram e a amendoeira deu lugar a ponto de táxi...

Luxuosos privativos substituem as valas que foram usadas, na extensão do campinho do Senai para as necessidades fisiológicas. Os possantes chuveiros da Oficina geral, marco de um socialismo puro de corpos humanos nus em banhos ao entardecer de um dia de trabalho estão substituídos por chuveiros quentes e paredes cheirosas. Se antes os banhos eram realizados nos entroncamentos de máquinas, tornos, peças de reposições de vagões e calor humanos nos que esperavam sua vez no chuveirão da Oficina Geral, hoje a individualidade afasta ainda mais o socialismo humano que some na relação dos homens... Apenas a saudade e a certeza de ter dado o primeiro passo na luta pela transformação da diferença de classes, ornamenta a cabeça de velhos combatentes...

As idas e vindas de empregados da Petrobras fazem o mesmo percurso que eram feitos pelos Ferroviários. A mesma rua, a mesma geografia, a mesma ilha do Papagaio. Só que o esbarramento dos olhos dos Ferroviários via uma praia de ondas esverdeadas, uma areia limpa e uma pedra escorregadia pelas algas que lhe faziam verde. Os Petroleiros olham também. Vem à mesma praia, suja, com ondas fracas, tristes e moribundas. A pedra é pedra que mais parece pedra de obras. Fria, sem calor vital. O olhar mais longo vê a mesma ilha do Papagaio cheia de embarcações, cercadas de detritos, pedaços de paus com nomes estrangeiros e muito plásticos, cocôs multinacionais e mais fedorento boiando onde antes os botos faziam à festa inocente para alegria dos moradores... Parece mesmo a Praça Mauá dos anos 60 quando se iniciou a destruição da Baia de Guanabara.

Que estes que destroem, conscientemente, esta beleza natural, bebam petróleo, quando a água se acabar...

Canela de Pau, o velho Gama e Guarda-freios, o combatente Tavares estão unidos na diferenciação geográfica da cidade que os viram nascer no século passado. Unidos na busca de uma nova sociedade Justa Igualitária e Fraterna eles procuram exemplificar-se para as gerações futuras.

Canela de Pau e Guarda-freios, no inicio dos anos de 2007, fundam a Liga Operária

em Macaé. Convidam mais 7 velhos militantes, e numa memorável tarde/noite, na Associação de Aposentados da Rede Ferroviária de Macaé, a Liga é formada. Velhos ferroviários e jovens petroleiros são os pilares desta nova luta se travará na busca de um mundo melhor...

A história destas vivências humanas é a certeza fria e cruel de que o “Homem é o que é por último” como queria o filósofo de nossas ruas empoeiradas, Fernando Frota, morto aos 74 anos sem que sua máxima tivesse sito estudado por quem deveria fazê-lo.